Se é verdade que é um tema onde existem exemplos para todos os gostos, há uma base, um traço comum que importa sublinhar e aprofundar.

Somos, à partida, todos iguais: mas, de facto, não é exatamente assim.

Senão vejamos: existe a ideia de que o quadro das nossas vidas começa a ser pintado quando nascemos e se constrói ao longo do tempo, com base nas nossas escolhas, decisões, espírito de sacrifício e resiliência. Mas coloca-se a derradeira questão: não somos nós o resultado de algo muito mais complexo? Não foram as nossas experiências definidas, por exemplo, pelas experiências e trajetos dos nossos pais?

Esta reflexão está intimamente relacionada com o conceito da meritocracia. Realidade pura e intocável para uns – os que entendem, sem hesitação, que quem produz melhores resultados deve ser melhor recompensado, numa lógica assente num princípio justo, universal, aplicável à generalidade das situações e dos casos – mas na verdade, afigura-se mais próxima de uma ideia generalista e algo redutora do que propriamente uma verdade intocável e inatacável.

É absolutamente urgente questionar se essa ideia de meritocracia é realmente um sistema imparcial ou se é um embuste que perpetua as desigualdades sociais em benefício de favorecer os já favorecidos pelas circunstâncias e por tudo aquilo que os rodeia.

Dúvidas não subsistem, pois, que as portas que a uns se vão abrindo permanentemente são as amarras sufocantes de outros que, pelo simples facto de não terem tido os mesmos meios e hipóteses, deambulam e navegam, muitas vezes, contra ventos que não lhes querem dar uma oportunidade. Estas pessoas não cabem na “caixinha” perfeitamente desenhada para acomodar o privilégio com tudo o que este merece.

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Em 2021, segundo os dados dos Censos divulgados pelo INE, cerca de 13% das habitações em Portugal não dispunha do número suficiente de compartimentos para alojar devidamente todas as pessoas que nelas residiam. Crianças e jovens nesta condição estão na mesma linha de partida? Muitos não chegam a cruzar a meta.

É fundamental reconhecer que a igualdade de oportunidades não significa avaliar da mesma forma coisas diferentes. Precisamos de um sistema que ofereça um suporte adicional àqueles que enfrentam desvantagens estruturais, que pouco tem que ver com a sua competência e mérito individual.

Isso implica investir em educação de qualidade em comunidades desfavorecidas, a escola pública deve eliminar barreiras sociais, afastar preconceitos e estigmas, promovendo a igualdade. Implica garantir oportunidades de desenvolvimento profissional acessíveis a todas as pessoas, e privilegiar políticas públicas que salvaguardam as carências económicas e sociais.

Este caminho começa na escola. Quando é que compreendemos que não é razoável avaliar o Quadro de Mérito de um aluno que vive em contexto familiar de fragilidade social, sem acesso a todas as ferramentas de desenvolvimento, da mesma forma que é avaliado um aluno que vive num contexto familiar estável, com finanças familiares confortáveis e com acesso a todos os meios que o vão ajudar a desenvolver-se e a conquistar a ideia de mérito que hoje falamos?

É justo qualificar o valor com os mesmos requisitos, de quem tem tudo a seu dispor e quem pouco dispõe?

A COVID-19 acabou por vir a acentuar este fosso. Com a transição para o ensino à distância, ficou evidente que nem todos os alunos tinham acesso igual às ferramentas necessárias. Enquanto alguns dispunham de computadores, acesso a internet e um ambiente adequado para estudar, outros debatiam-se pela dificuldade em adquirir essas ferramentas. Em 2020, no estalar da necessidade do ensino à distância, cerca de 45% dos alunos do 1.o ciclo não tiveram a possibilidade de acompanhar as aulas, pelo menos nas duas últimas semanas no segundo período escolar.

A luta pela igualdade de oportunidades é uma responsabilidade social. Este modelo de mérito, associado ao conceito de meritocracia, é o motor da máquina que constrói muros e derruba pontes entre classes.

Só uma visão humanista e integradora, pode permitir que o elevador social funcione: não porque uma qualquer ideia de meritocracia o coloca em andamento, antes porque o Estado Social é a pedra de base que aproxima todas as pessoas da partida.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico