Na sequência da covid 19 e da crise energética que eclodiu no quadro das sanções contra a Federação russa, a União Europeia criou um instrumento de apoio denominado Mecanismo de Recuperação e Resiliência (MRR). Neste âmbito foi lançado em Portugal o Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) com o objetivo de estimular o ambiente económico e renovar o tecido empresarial através da promoção de agendas mobilizadoras e a formação de consórcios empresariais. A filosofia do PRR é uma aplicação arriscada da teoria económica das redes e aglomerações, se quisermos, uma atualização da teoria dos clusters de Michael Porter dos anos noventa, desta vez em plena transição climática, ecológica e digital. É bom lembrar que os impactos assimétricos destas grandes transições alteraram substancialmente a estrutura de custos e benefícios dos territórios – custos de contexto, administrativos e burocráticos, de formalidade e certificação, de mitigação, adaptação e compensação, de regulação, de cobertura de riscos e custos de oportunidade – e, em consequência, a posição relativa das regiões em matéria de competitividade e cooperação empresarial. Num país como o nosso, uma pequena economia aberta muito vulnerável, e onde o peso das PME com menos de 10 trabalhadores é largamente maioritário, o rejuvenescimento empresarial, o recrutamento de quadros técnicos qualificados e o redimensionamento da estrutura empresarial são fatores determinantes para  a competitividade e o crescimento económico do país e, nesse contexto, os instrumentos do PRR – as agendas mobilizadores e os consórcios empresariais – são seguramente decisivos para promover esse ambicioso desiderato até ao final de 2026, embora os requisitos a cumprir em matéria de realização de despesa – os marcos e as metas a observar – sejam altamente exigentes.

Sabemos de longa data (Marshall, 1920) que a aglomeração de atividades é uma característica central da geografia económica. Sabemos, com o diamante de Michael Porter (1990 e 1998), que o ambiente de negócios no plano regional depende de vários fatores: a oferta de fatores básicos e avançados no plano local/regional, a escala e a sofisticação da procura local, a existência de indústrias correlacionadas e competitivas, o equilíbrio e o compromisso entre competição e cooperação e o papel das associações empresariais e entidades de regulação, a estrutura dos custos de contexto locais e regionais, a natureza  e orientação das medidas de política pública nos planos territorial e setorial, o papel das entidades públicas, do sistema financeiro e das instituições de investigação e desenvolvimento, a cobertura dos riscos e fatores contingentes de cada conjuntura.

O princípio geral da economia do PRR é simples no seu enunciado, a saber, a cooperação é uma vantagem competitiva. Para realizar este princípio geral e cumprir os fatores do diamante de Porter, o PRR propõe aos destinatários potenciais – intermediários, beneficiários diretos e finais – dois instrumentos estruturais fundamentais, as agendas mobilizadoras e os consórcios empresariais. Os benefícios desta cooperação estruturada  são por demais evidentes: a formação de plataformas de exportação e importação e a organização de redes logísticas comuns, a partilha de investimentos em infraestruturas de investigação-ação e a formação avançada de quadros técnicos, a elaboração de estratégias comuns de eficiência coletiva, a internalização das economias externas proporcionadas pelas economias de rede e aglomeração, a determinação e afirmação de uma vantagem competitiva regional para o mercado global.

Ora, conhecendo nós a extrema atomização do tecido empresarial e a sua baixa capitalização, e independentemente do que estabelecem as agendas mobilizadoras e os consórcios empresariais do PRR, são, igualmente, evidentes os custos associados ao arranque e consolidação do PRR nos prazos estabelecidos. Senão vejamos:

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  • Em primeiro lugar, é necessário, em cada caso, uma estrutura associativa forte e uma liderança esclarecida de cada consórcio;
  • Em segundo lugar, os prazos (final de 2026), as reformas e os projetos, as métricas (os marcos e as metas) e o ritmo dos reembolsos de despesa, colocam uma pressão inusitada sobre a realização em concreto de cada projeto;
  • Em terceiro lugar, se o princípio de cada consórcio é não deixar ninguém para trás, então, as diferentes velocidades dos parceiros (metas quantitativas) irão necessariamente sobreaquecer todo o processo e procedimento de formação das economias de rede e aglomeração, com os prejuízos que isso acarreta em termos de realização e reembolso de despesa;
  • Em quarto lugar, o que se disse anteriormente dependerá diretamente das reformas previstas no PRR (metas qualitativas) e estas da maior ou menor instabilidade governativa que, como sabemos, já atravessou dias melhores; o mesmo se diga a propósito da governação multiníveis entre a Comissão Europeia, os organismos públicos, as autoridades intermediárias, os beneficiários diretos e os beneficiários finais, ou seja, pode estar criado um verdadeiro labirinto se a instabilidade governativa se confirmar;
  • Em quinto lugar, temos muitas dúvidas de que os 53 consórcios constituídos ao abrigo do PRR pudessem alguma vez ser formados de geração espontânea, ou seja, não existiu verdadeiramente espírito genuíno de cluster e motivação bastante para os constituir; dito de outro modo, a grande maioria dos consórcios são policy-driven e essa geração deixa-os prisioneiros de uma crise grave europeia ou mundial que pode eclodir a qualquer momento;
  • Em sexto lugar, a capitalização empresarial de PME, a fusão e a concentração empresariais, o mercado de capitais português para PME nesta fase crucial, a consolidação do universo português de start up, o capital de risco orientado para o PRR em particular, o recrutamento de talento jovem para este grande empreendimento que é o PRR, são tudo fatores em aberto e com um grande ponto de interrogação;
  • Em sétimo lugar, é fundamental respeitar a origem e a natureza dos fundos europeus e o custo de oportunidade de cada projeto de investimento, isto é, para obter o maior retorno ao menor custo de cada projeto é imprescindível fazer a devida articulação/coordenação dos instrumentos financeiros do PRR, PT 2030, dos Programas Transfronteiriços, dos Programas especificamente europeus, dos empréstimos do BEI;
  • Finalmente, a relação entre entidades de investigação e desenvolvimento e os consórcios empresariais defronta-se com a eterna precariedade dos jovens investigadores portugueses; alguém acredita, neste momento, que essa precariedade vai ser convertida em estabilidade socioprofissional e remunerações condignas por via de uma eventual relação contratual estabelecida no interior dos consórcios empresariais?

Nota Final

A economia do PRR está distribuída por 9 grandes áreas setoriais e 53 consórcios empresariais para um investimento total de 22 mil milhões de euros (subvenções e empréstimos) até ao final de 2026. É verdadeiramente uma nova economia do território em construção. Esta breve reflexão sobre a economia do PRR, não tratou, como bem se percebe, da engenharia própria das agendas mobilizadores e dos consórcios empresariais que já estão em operação. Não foi essa a minha intenção. Seja como for, reformas estruturais de longo alcance no nosso tecido empresarial até 2026 são um enorme desafio para todos os parceiros envolvidos. Entretanto, o programa já sofreu a primeira reprogramação em outubro de 2023 e outras, porventura, se seguirão antes ou após 2026. Acresce que, a instabilidade governativa que se avizinha e os fatores de contingência crítica que vamos conhecer até ao final deste ano são, só por si, fatores de alerta de enorme relevância política e económica. De resto, e apesar da sua juventude, o PRR já tem uma história para contar. E muito mais história haverá para contar. Teremos de voltar ao assunto.