Na madrugada do dia 21 de fevereiro, morreram na Segunda Circular, em Lisboa, três pessoas, que viajavam juntas num veículo em excesso de velocidade, num acidente muito aparatoso, que derrubou postes e deixou a estrada pejada de destroços macabros.

Tudo indica que estas pessoas estavam a participar numa corrida, um ato criminoso que poderia ter custado a vida a terceiros, que não tendo nada a ver com o assunto, poderiam, também, ter sido vítimas e perdido a vida, o que, aliás, nem sequer é inédito na Segunda Circular. Estamos perante atos criminosos recorrentes, praticados por pessoas conhecidas das autoridades, que repetem, de forma deliberada e irresponsável, crimes idênticos a outros já cometidos no passado, de que resultaram outras vítimas e outros mortos, E, no entanto, continua a acontecer.

Este caso, embora chocante, não é mais do que um sinal extremo de uma epidemia que se estende pelo país inteiro e está à vista de todos. A epidemia do excesso de velocidade, só porque sim, em todas as circunstâncias e quase sempre impune.

Como todos sabem, o excesso de velocidade é uma das principais causas dos acidentes de viação e atropelamentos. Em Portugal Continental, de acordo com os dados da PORDATA relativos a 2018, morreram 105 pessoas em resultado de atropelamentos e 508 pessoas na sequência de acidentes de viação. Temos, ainda, que contar cerca de 43000 feridos.

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Para além do trauma infligido pela perda de vidas humanas e por todos os ferimentos provocados nas vítimas, alguns incapacitantes e irreversíveis, temos o impacto na nossa sociedade, no sobrecarregar do sistema de saúde, nas faltas e baixas que afetam empresas e serviços públicos.

Uma tragédia desta magnitude levaria a supor uma reação em peso da sociedade. Mas será mesmo assim? No que diz respeito às autoridades tem havido efetivamente uma reação para diminuir as vítimas desta epidemia. Foram colocados alguns radares fixos nos pontos onde se dão mais acidentes e nas zonas urbanas têm-se criado as “zonas 30” e sobre-elevado algumas passadeiras. Mas a sociedade civil não tem mostrado grande interesse por esta epidemia e não a brinda com audiências nem visualizações nas redes sociais, exceto nas épocas festivas ou nos acidentes extremos como este. E no entanto os meios de comunicação social falam na epidemia da velocidade, por exemplo nos “Talk shows” de rádio que têm grande audiência entre os automobilistas e onde se ouve gente a gabar-se de conduzir rápido.

É uma reação muito poucochinha tendo em conta o somatório de tragédias que estão por detrás destes números. Voltando às autoridades, muitos problemas de fundo na organização e gestão das estradas mantêm-se. É comum os condutores depararem-se com limites de velocidade totalmente inconsistentes com a realidade das vias onde circulam, ou com sinalização horizontal errada. Nas auto-estradas, os limites de velocidade continuam a não estar ajustados às condições atmosféricas e por isso um limite de 120Km/h não é igualmente adequado para chuva forte, nevoeiro, ou um dia seco com boa visibilidade. E a fiscalização de velocidade é inexistente dentro das cidades e muito rara nas estradas nacionais e auto-estradas. Os próprios Guardas da Brigada de Transito justificam-se quando estão a fazer a sua o obrigação, como se o normal seja a lei do mais rápido e agressivo e o anormal o Estado de Direito.

O aumento do números de acidentes e feridos graves em 2019 mostram que as medidas tomadas até agora não são suficientes. Nas nossas estradas continua a imperar o nacional-porreirismo, ou a indiferença e condescendência institucionalizadas. Esta epidemia tem de ser combatida de forma eficaz e já se percebeu que a consciencialização dos atuais condutores, só por si, não chega. Tem de existir uma ação política para evitar que no próximo ano, e no outro, e nos outros seguintes continuem a morrer centenas de pessoas em acidentes e atropelamentos. O Estado não tem de estar em todo o lado, mas tem de estar onde é preciso, garantindo a liberdade de circulação em segurança e o respeito pelo Estado de Direito.

Quando hoje olhamos a forma como se bebia e fumava há 30 ou 40 anos temos dificuldade em perceber como era possível fumar dentro de um avião, num restaurante ou num transporte coletivo de passageiros ou como se bebia e fumava no local de trabalho. Temos dificuldade em compreender como as pessoas toleravam isso e não se apercebiam do custo em qualidade de vida e mesmo de vidas humanas que esses hábitos implicavam. Estou certo que a maioria dos portugueses nascidos após 2015, quando tiverem idade para pensar nisso, vão olhar para a forma irresponsável como, hoje, se conduz em Portugal, com a mesma perplexidade e tão-pouco vão compreender como fomos capazes de provocar tanto sofrimento humano, mais emissões de CO2 e mais consumo de combustível pela fugidia emoção de conduzir um carro potente ou, simplesmente, o total desprezo pelos outros.

É preciso deixar claro que o nacional-porreirismo mata e que a nossa sociedade tem a obrigação de estancar esta epidemia e salvar a vida de cada uma das futuras vítimas de acidentes rodoviários e atropelamentos que, caríssimo leitor, pode ser você ou eu.