Naquela altura, morava no Largo ao Pé da Cruz, em Faro, num 3º andar de onde se via todo o largo. Este acaso teve um enorme impacto na minha perceção do que foi o 25 de abril de 1974. Tinha 6 anos de idade. Foi nesse largo que o PS instalou a sua imponente sede distrital. E um pouco mais longe, por detrás da igreja ao lado da sede do PS, naquela que agora se chama Rua da Polícia de Segurança Pública, em frente à escola secundária, ficava, num pequeno prédio de dois andares, a sede distrital do PSD. Essa proximidade, aliada ao interesse e entusiasmo familiar, permitiu-me despertar politicamente e testemunhar, com a devida atenção, o que estava a acontecer.

Um dia estava na varanda, a brincar com os meus dois irmãos quando alguém reparou no pequeno ajuntamento de pessoas reunidas em frente ao PS. Passado algum tempo pára um carro, do qual saem algumas pessoas, sendo uma delas facilmente reconhecível. O “Bochechas”, a quem começámos a chamar por esse nome, ao que o próprio responde com um simpático aceno. O “Bochechas” era, claro está, Mário Soares. Noutra ocasião, agora de noite, foi a vez de o meu pai me levar a outro ajuntamento reunido no passeio em frente à sede do PSD. Foi assim que vi pela primeira vez, em pessoa, Francisco Sá Carneiro. Vinha de fato e gravata, com ar cansado. No pequeno trajeto entre o carro e a entrada do prédio cumprimentou algumas das pessoas que ali estavam, eu incluído.

Foi também uma época de muita música. Na sede do PS lembraram-se de colocar uns altifalantes nas varandas e durante horas, de dia e noite, passavam demasiado alto, esganiçados hinos “socialistas”, destacando-se, em replay, o hino da Internacional Socialista.  Esta situação manteve-se até ao dia em que a minha mãe lembrou a um conhecido do PS que não era conveniente ter música a altos berros na hora em que as crianças deveriam estar a dormir. E assim ficaram as noites mais sossegadas, exceto nos frequentes dias em que havia um comício.  À época, o único canal da RTP, também passava imensa música relacionada com a revolução, sobretudo aquela que conhecíamos como a música da Gaivota, na realidade uma música com o título “Somos Livres” de Ermelinda Duarte e José Cid.

Apesar de, em 1974 haver muitos mais jovens do que hoje, essa geração passou muito menos tempo na escola. A maior parte da população tinha apenas a 4ª classe. O curso comercial ou industrial, completados naquele que agora é o 9º ano do ensino básico, correspondia ao nível de instrução de uma boa parte dos quadros técnicos existentes. Os Cursos Superiores eram um privilégio para uma pequena parte da população. Antes de Abril de 1974 tínhamos um país fechado, que politicamente estava de costas voltadas para a Europa, obcecado com a ideia de manter um império colonial que incluía territórios em 3 continentes, o que já nessa época era completamente anacrónico. Na altura havia em Portugal uma imitação de democracia, com “eleições” à maneira da Rússia e uma polícia política, a PIDE, essa sim tão real quanto o risco de ir parar à cadeia por causa de opiniões políticas. Em abril de 1974, ainda existia a Mocidade Portuguesa, para crianças e jovens e a Legião Portuguesa para os adultos, organizações inspiradas nos modelos da Alemanha Nazi e da Itália Fascista.

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O regime de Salazar, e depois de Caetano, foi incapaz de se transformar ou evoluir. Era conservador nos costumes e totalmente desalinhado com os países mais evoluídos e ricos da Europa. Portugal era um país paroquial e prisioneiro do seu passado. Os portugueses reféns da ideia de conservar um império a todo o custo. A ideologia do império sobrepunha-se a tudo. É irónico, mas tirando a componente económica, o Estado Novo tinha algo em comum com aqueles que ferozmente combatia, os comunistas. Uns e outros desprezavam a democracia e punham a sua ideologia em primeiro lugar, à frente das necessidades e anseios dos portugueses.

A minha geração não teve de ir para a guerra colonial, não teve de emigrar para fugir a essa guerra, ou para fugir da fome que existia no interior do País. O nosso voto passou, efetivamente, a eleger governos democráticos. A minha geração pôde aproveitar as oportunidades que nos trouxe a adesão ao que é hoje a União Europeia. Beneficiou do imenso crescimento do ensino universitário e politécnico que gerou, sucessivamente, as duas gerações mais educadas da história do País. Pôde entrar livremente nos países da Europa Ocidental, sem medo de ver a sua entrada recusada, seja para visitar, estudar ou trabalhar. Teve a oportunidade de aceder a empregos em domínios muito mais sofisticados e dinâmicos do que era imaginável no tempo de um Estado Novo isolacionista e apegado a monopólios.

Por isso devemos estar gratos aos muitos heróis entre os quais Salgueiro Maia, Sá Carneiro, Mário Soares, António de Spínola, Ramalho Eanes e todos os que, direta ou indiretamente, pensaram, prepararam e executaram a revolução do 25 de abril de 1974 para instalar um regime de democracia liberal e ancorar Portugal na Europa.

Mas ainda que neste dia tenha terminado o regime de Ditadura, o caminho para a consolidação da democracia plena durou ainda muito tempo. Lembro-me bem das semanas e meses que se seguiram. De repente toda a gente falava de política. Pessoas que até então se estimavam, zangavam-se e deixavam de se falar. Na rua, em Faro, houve múltiplas cenas de violência entre “os retornados”, de um lado, e a extrema-esquerda, do outro. Foram incendiadas casas que, por coincidência, tinham arvorado bandeiras do PPD/PSD. Muitas empresas foram tomadas por “comitês de trabalhadores” ligados à esquerda revolucionária. Esses comités saneavam, ou melhor dizendo, despediam os quadros que não fossem da mesma cor política que eles. Na televisão, que emitia poucas horas por dia, íamos assistindo ao desmantelamento do Império, com uma sucessão de cerimónias de independência das ex-colónias. Na estrada, entre Faro e Lisboa, na zona de Grândola, havia barreiras populares armadas, que revistavam todos os veículos que passavam. Herdades eram ocupadas e tomadas, e muitas empresas nacionalizadas. Os seus proprietários expulsos sumariamente e sem qualquer compensação. Foram meses de anarquia e desfecho incerto. Só em 25 de novembro de 1975 ficou claro que Portugal não se iria tornar numa espécie de Cuba Popular, no extremo ocidental da Europa, tendo aí terminado também a fase mais crítica de transição da ditadura para a democracia liberal.

Por essa altura, numa feliz coincidência, o falecimento de Francisco Franco, o ditador espanhol, marcava também o início do processo de mudança de regime para a democracia de “nuestros hermanos”, numa versão menos caótica e arriscada da   nossa transição, que permitiu preservar a economia espanhola.

Hoje, tenho dois filhos, um deles já formado em Direito, a estagiar num escritório de advogados em Paris, onde quer continuar. O outro, ainda na Faculdade, estuda na Universidade Nova, planeando fazer a sua vida profissional em Portugal.

Eu tinha seis anos em abril de 1974. A minha geração foi a primeira a passar a maior parte da vida num Portugal democrático e solidamente europeu. Nestes últimos tempos tenho-me questionado sobre o País que vamos deixar à geração que hoje tem 6 anos.

Sem dúvida um país muito mais livre, educado, sustentável e próspero do que aquele que tínhamos há cinquenta anos, mas também um país muito mais anquilosado, com um crescimento anémico, uma população envelhecida e focada no curto prazo. Um país sem ambição, pouco exigente consigo próprio, mimado, onde a igualdade de oportunidades está longe de ser a regra.

A geração que hoje tem seis anos está agora a iniciar a escola primária. e fará a escolaridade obrigatória até ao 12º ano. Alguns irão começar a fazer trabalhos durante as ferias, outros ingressam no mercado de trabalho quando acabarem o 12º ano. Muitos irão para o ensino superior. Serão jovens adultos em 2036.

Podemos olhar para países europeus, entre os mais ricos e felizes, como por exemplo a Finlândia ou a Holanda e constatar o quanto ainda pode ser melhorado. Gostaria de deixar a esta nova geração um país em que ela queira viver, trabalhar, prosperar e ter, de preferência, vários filhos. Um país com um crescimento económico vibrante e agilidade social. Um país livre e democrático, com igualdade de oportunidades, onde a iniciativa e o mérito sejam premiados, numa sociedade justa e coesa. Com um aparelho estatal competente, transparente e focado nas necessidades dos seus utentes e não no seu umbigo. Um aparelho de estado financeiramente sustentavel, que não deixe a fatura do seu custo para a geração seguinte. Que Portugal seja em 2036 um dos países mais ricos e felizes da Europa. É o que gostaria de deixar para esta nova geração. Quando isso acontecer, teremos efetivamente cumprido todos os objetivos do 25 de abril de 1974.