1 Reencontram-se os cheiros do campo, vêm da horta, dos eucaliptos, do buxo, da relva, das rosas que nem no inverno nos desacompanham. Cheira bem. Os (muito) matutinos ouvem cantar o galo na aurora do dia, ao adormecer ouvimos o latido dos cães nos campos vizinhos. Reencontramos o “andar por aí”, à procura de ramos, verdura, folhas. Não há bolas, nem laços neste Natal campestre, vai-se “lá fora” e pega-se no que a natureza tem de pródigo para os que a procuram, sabendo-a a mais que perfeita das molduras natalícias. Em Dezembro os nossos dias aqui são longos mesmo que no calendário o inverno os encene curtos, e as noites não nos chegam para “dar vazão” à festa do reencontro familiar. Apesar do vagar, há um toque de boémia e de algazarra, casa movimentada.

Um dos grandes momentos é o “fazer” do presépio, gesto que apesar de reeditado há anos sem fim, consegue conservar intacto e inteiro, um mistério tão imenso que é com ele e com a incomparável magia que dele transborda que o vamos fazendo e refazendo, época traz época. Os dias escorrem, joga-se à bola, torra-se bolo rei, fala-se muito, disputa-se o écran da única televisão, ouve-se Vivaldi e Haendel e a Ave Maria de Schubert. E volta a olhar-se o presépio, sem cansaço. Pode ser grande, pequeno ou médio; de barro, de gesso pintado, de papel, pano, faiança ou madeira; popular ou mais sofisticado, acabado de fazer ou já com idade antiga. É conforme as vontades e as idades de quem o elege.

Ao longo dos anos tenho trazido presépios das geografias por onde andei, cada Natal cabe a sorte a qualquer um deles, só se decide quando começa a chegar “toda a gente” aqui ao Oeste. Toda a gente é essa coisa absolutamente insubstituível chamada família. Sustentáculo de muito – talvez de tudo; pilar de sociedades e comunidades, raiz de uma pátria; imutável porto de abrigo para todas as estações , da afinidade e da dissonância; da fortuna e do infortúnio; da alegria e da melancolia, da proximidade e da distância. Da vida e da morte.

É talvez por estarmos conscientes disso que readquirimos aqui naturalmente uma apreciação das coisas com mais vagar. Ouve-se melhor, conversa-se com outra atenção,

discute-se com mais racionalidade. E anda-se a pé na rua, entra-se nas lojas de “toda vida”, sorrindo para as mesmas vendedeiras de sempre no mercado da fruta, trocam-se boas festas com amigos e conhecidos com quem nos cruzamos, espreitamos as luzes natalícias à noite.

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Sabemos que é o milagre do Natal que traz este intervalo doce. Pausa breve e quase fictícia na sua dissonância do mundo como ele está, apesar da fortíssima verdade de que o nosso intervalo é feito: a vontade de continuar a ser uma família, dois ou três valores, dois ou três mandamentos. Parece pouco, é imenso.

Tudo isto, é claro – e tal como eu ontem escrevia a um amigo muito próximo –, com “a melancólica lucidez de perceber/saber que o nosso intervalo se passa numa ilha, estamos numa ilha: isto é, ao largo da guerra, do ódio, do desnorte e do perigo do desnorte; da polarização politica, da fragilidade liderante, da pulverização das instituições. Da decadência ameaçadora da civilização que nos foi berço e permanece matriz. Não fazemos de conta que não é assim, não o disfarçamos, nem desertamos do mundo. Apenas nos consentimos o ser felizes, aqui, nesta pequena freguesia campestre, modestamente iluminada pelos seus enfeites luminosos. Felizes em família. Felizes todos juntos.

Honrando o privilégio deste intervalo e se formos capazes honrando o compromisso do desafiante recomeço que é o nascimento de Cristo.

2 Na sua recente Carta Pastoral, “Dai Razões da Vossa Esperança”, o Patriarca de Lisboa, D. Rui Valério suscita – e suscita-nos – em 20 páginas e curtos capítulos inspiradas reflexões que em tempos de guerra e de cólera, talvez sejam capazes de nos levar pela mão: ate à vontade da esperança, até á porta do Ano Jubilar de 2025.

Deixo apenas a abertura do capítulo “A Esperança Cristã num Mundo Secularizado” por me parecer que merece boa nota e atenta reflexão:

“A nossa sociedade nos últimos séculos e décadas, secularizou muitos elementos da fe cristã, não só do ponto de vista iconográfico mas também no que concerne a muitos valores cristãos. Um desses elementos que foi secularizado e neutralizado na sua potência cristã foi a esperança. Na sociedade secularizada no nosso tempo, a esperança cristã foi substituída pelo optimismo. O optimismo que muitas vezes bloqueia a capacidade de ver a realidade. E assim, diante da angustia e das tristezas sentidas, o optimismo tornou-se apenas uma “espera” , por algo melhor , como sucede quando se vai ao médico e ficamos na “sala de espera” aguardando a nossa vez. Há “salas de espera” mas não há “salas de esperança”(…).

PS. Santo Natal! Boas Festas. Até daqui a quinze dias