Foi necessário esperar meio século para termos, novamente, um almirante com vontade de sentar-se na cadeira de Belém.

Depois de Américo Tomaz, deposto no 25 de abril, com 16 anos de “reinado”, feito na obediência a Salazar e a Marcelo Caetano, surgiu agora Henrique Gouveia e Melo a encabeçar algumas sondagens, alçado a protocandidato à Presidência da República na corrida prevista para janeiro de 2026.

Para variar do “suspense” do Orçamento de Estado – que sentou, por fim, frente a frente, o primeiro ministro e o líder da oposição –, a “sucessão” de Marcelo Rebelo de Sousa promete ser animada e um palpitante folhetim para entreter quem estiver já cansado da dialética das contas do Estado.

Se Américo Tomaz ficou conhecido pelo celebrado “despacho 100”, de agosto de 1945, enquanto ministro da Marinha na vigência do Estado Novo – apontado como marcante na reabilitação e modernização da marinha mercante –, o almirante Gouveia e Melo, apesar do invejável currículo no comando de submarinos, distinguiu-se, afinal, mais à superfície, pelo seu saber logístico à frente da “task-force” na campanha de vacinação contra o Covid 19.

Essa prova de fundo, que impressionou os portugueses – mais habituados à “balda” do que à disciplina de serem vacinados ao minuto –, premiou Gouveia e Melo com uma popularidade pouco usual num militar, portador ainda da novidade de se ter apresentado no espaço público de camuflado, durante inúmeras prestações televisivas, o que impressiona sempre e tem um valor específico.

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Explicava, então, o hoje almirante, que envergava o camuflado por estar envolvido numa “guerra” contra o vírus (“Queria aparecer como oficial das Forças Armadas, mas também passar a ideia de que este vírus é perigosíssimo e que nós estávamos em guerra. E a guerra é da comunidade contra o vírus”).

O uniforme, conforme admitiu, seria usado como simbologia principal, para “incentivar as pessoas a aderir à vacinação em massa”. Resultou.

O vírus, “cozinhado” na China, que infectou o planeta, acabou a disparar os alarmes da OMS, organização que decretou a pandemia, a partir de pressupostos que continuam a ser controversos.

Após a proeza bem-sucedida da vacinação dos portugueses, Gouveia e Melo pôs um ponto final na sua carreira de submarinista, e, com a bênção do governo socialista, rendeu o colega Mendes Calado, afastado a meio do mandato à frente da Armada, e ascendeu a almirante, com o “periscópio” apontado a Belém, observatório privilegiado da nossa vocação marítima.

A ambição é legítima e à falta de outro “despacho 100”, Gouveia e Melo reagiu incomodado com os jornalistas, que insistiam em saber se está ou não disponível para se candidatar a Belém, enquanto faz constar que nada obsta a que um militar possa concorrer à suprema magistratura da Nação, quando na reserva. E tem razão.

O certo é que o seu nome passou a figurar nas sondagens e, na última divulgada há dias, ficou a saber-se que para 21% dos 818 portugueses inquiridos com respostas válidas – segundo a ficha técnica do trabalho –, Gouveia e Melo é o preferido para Presidente, com vantagem apreciável sobre Passos Coelho, que nada disse sobre a sua disponibilidade, e, a grande distância de Luís Marques Mendes, que aproveitou a sua tribuna de comentador semanal para dizer que estava em adiantado estado de reflexão.

Para desgosto, talvez, do almirante, quer Luís Montenegro, quer Pedro Nuno Santos já declararam que não tencionam prescindir de um candidato próprio nas próximas presidenciais, identificado com as respectivas cores partidárias, algo que não parece tê-lo impressionado.

É natural, portanto, que, por esta altura, além de Marques Mendes, também Mário Centeno e outros putativos candidatos a Belém – sem esquecer Ana Gomes, Paulo Raimundo, Mariana Mortágua, André Ventura e Augusto Santos Silva – estejam a por “as barbas de molho” (salvo seja…), perante a eventual apetência do almirante pela política activa.

Especulativamente, não será nada que interfira ou modifique o perfil de Gouveia e Melo, que prometeu um esclarecimento cabal no final do ano, salvo se o poder político lhe “trocar as voltas” e prorrogar o mandato militar, que termina nessa altura… hipótese que não é descartável e que, na prática, poderia contrariar o “chamamento” de Belém, o seu “despacho 100” …

Entretanto, noutro plano, se descontarmos a hipermediatização do encontro dos “chefes” na residência oficial de S. Bento, o que sobrou desse momento resume-se de uma forma simples: repetiram um ao outro o que já se sabia e não se entenderam sobre as propostas principais do Orçamento de Estado.

No final, Pedro Nuno Santos argumentou que o PS não podia aprovar o documento sem que o governo cedesse na redução do IRC e do IRS jovem, reservando a poupança conseguida nessas rubricas para investir noutras despesas gratas aos socialistas; e Luís Montenegro reconheceu o óbvio, ou seja, que as propostas do PS eram inflexíveis e radicais e que Pedro Nuno queria, afinal, governar sem estar no governo e prometeu uma contraproposta.

Pelo meio, voltou a falar-se de “linhas vermelhas”, uma metáfora repetida amiúde, enjoativamente, de parte a parte, seja a propósito da relação do PSD com o Chega, ou sobre o travejamento do Orçamento de Estado em matéria de opções de fundo.

Se no final, alguém achar que tudo isto é surreal acerta em cheio e não se engana em relação a um despique absurdo, que não aproveita ao governo nem à oposição socialista e muito menos ao País.

A campanha está para durar, as birras e os amuos também, num terreno movediço, com uma guerra de incertezas às portas da Europa, uma ONU inoperante refugiada nas alterações climáticas, o Médio Oriente incendiado, e as eleições na América sujeitas a uma elevada imprevisibilidade em novembro.

O que espanta, aliás, é como a política caseira se desdobra em “jogos florais” e evolui à margem de tudo isto, como se estivéssemos num casulo ao abrigo de quaisquer consequências nefastas,  isolados  na periferia da Europa, a um canto do mundo.

Essa apatia pode parecer confortável, mas soa a falso. Paga tributo. E não é séria.

O Orçamento de Estado costuma ser um documento tecnicamente denso, dissecado cirurgicamente consoante as inclinações de cada partido, dos principais aos mais pequenos, que se gabam depois das alterações introduzidas na especialidade, como um activo a seu favor.

Desta vez, porém, o primeiro ministro e o líder da oposição, porventura receosos da indiferença dos portugueses – cada vez mais notória –, resolveram dramatizar os desencontros de agenda, antes de conciliarem uma data para o encontro formal, em vésperas de fim de semana.

Muito se escreveu já sobre o caricato do que se passou e concordemos que não foi bonito. Valha-nos, porém, que se sentaram, finalmente, olhos nos olhos, com muito para dizer… e para esconder.

No final, sem vestígios do recreio onde se cruzaram nas suspeitas e acusações, Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos contaram o que lhes ia na alma, eventualmente condicionados pelo anúncio de Marcelo de que voltará a dissolver o Parlamento, se não terminarem a bulha e não chegarem a um acordo.

Marcelo tem fases mais activas e esta é uma delas. Aparece algures e logo fala. Sejam incêndios florestais, desastres naturais, desportos de alta competição, cenários de crise ou de conflito, enfim, o Orçamento de Estado – o Presidente nunca se faz rogado e não desilude quem espera dele uma frase para alinhavar um título de jornal ou uma entrada de telejornal.

Mais recentemente, a originalidade de um Orçamento que, antes de ser público, já motivava animados confrontos partidários, tem sido o principal objecto das atenções e das intervenções presidenciais.

A esse respeito já advertiu, uma e outra vez, sobre a crise política se o documento for “chumbado”. E, porventura, na dúvida sobre se todos tinham percebido bem, resolveu ser mais claro e por tudo “em pratos limpos “.

E anunciou que, em “nome do interesse nacional”, ou o PS e a coligação no governo se entendem, ou quem manda e decide é “o terceiro partido”. Ou sobra ainda para Belém, caso falhem estas alternativas…

André Ventura deve ter sentido o ego inchado, perante este inusitado bónus presidencial, que esquece o árbitro e desce à liça partidária, quando deveria manter-se acima dela.

Seja qual for o desfecho, Marcelo foi excessivo e envolveu-se demais. É certo que a Presidência, com ele, tem outros limites constitucionais. Mas conviria não exagerar e que outra fosse a sua “imagem de marca”, entre o populismo banalizado dos “selfies” e o omnipresente “comentador” político.

Claro que o Orçamento de Estado dá sempre “pano para mangas”. Dantes era um ritual, devidamente coreografado, que começava na solenidade da entrega do documento pelo primeiro ministro ao presidente da Assembleia da República.

Depois, o mesmo acto foi aligeirado e converteu-se à “pen”, graças às maravilhas da tecnologia. Mas o ritual manteve-se, prévio à análise e debate do documento pelos deputados da Nação.

Agora, antes mesmo de cumprida a formalidade ritualística, já o governo e as oposições se digladiaram – com o Presidente da República de permeio a dar uma ajuda -, rodeados de sábios “palpites” dos comentadores de serviço.

E isso bastou para que se estabelecesse um reboliço mediático à volta do encontro do primeiro ministro e do líder da oposição, para sossego das almas perturbadas, diante da possibilidade de as negociações ficarem “no tinteiro”.

Como ninguém se arrisca a “perder a face”, nem a parecer que quer o que não quer, veremos o que se segue neste “jogo de sombras”.

Nota em rodapé – É já conhecido o sucessor de Lucília Gago, como próximo procurador-geral da República.

Amadeu Guerra é da casa, pela idade está em fim de carreira, trabalhou de perto com a antiga PGR Joana Marques Vidal e não se esqueceu de mencionar, em 2012, no Congresso do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que não ajuda ao prestígio do Ministério Público a perceção de que a corrupção e os crimes económico-financeiros não têm resultados“. Sabe do que fala. E Sócrates também…

A sua escolha implicará, no entanto, para cumprir o mandato, que seja “alterada ou aclarada a lei para assegurar a continuidade do Dr. Amadeu Guerra para além dos 70 anos”, como lembrou o ex-PGR, Cunha Rodrigues.

Portanto, ou são mudadas as regras ou aquele magistrado atingirá o limite de idade já em 2025. O que, convenhamos, seria uma passagem assaz meteórica pela Procuradoria, sem tempo útil sequer para “arrumar a casa”, como desejou a actual ministra da Justiça…

Nota em rodapé 2Abeira-se o meio século sobre o 25 de novembro, a efeméride que o PS, acolitado pelas esquerdas festivas, deseja que não “mimetize” o 25 de Abril.

Os argumentos são os do costume, que, invariavelmente, tentam empurrar para o “saguão” da História o movimento ao qual os portugueses devem a recuperação   das liberdades, que estavam em vias de extinção, sob a batuta do PCP, que dominava parte da tropa, além dos media.

Claro que o PCP, o grande derrotado do 25 de novembro, está contra as comemorações e, através da líder parlamentar, quis “deixar expresso o desacordo à realização desta celebração”, aprovada no parlamento em junho passado.

Conciliador, Aguiar Branco propôs aos serviços que estudem um formato, com base em sessões solenes anteriores, e adiou a discussão do tema para melhor oportunidade.

Resta saber se o PS honra o fundador e não hipoteca a memória do comício na Fonte Luminosa e a luta de Mário Soares.