1 Redescrever a família
A escritora madrilena Rosa Montero é, fora dos seus livros, uma feminista profissional. Na aguerrida tradição espanhola, faz parte da associação Clásicas y Modernas e repete regularmente a ideia de que, na vida e na literatura, “la palabra del hombre sigue siendo la ley”. Na sua opinião, encontrar-se-ia aqui a justificação para o facto de as escritoras mulheres ocuparem um papel menos relevante no mundo literário, com menos reconhecimento público, poucos prémios literários e pouca visibilidade no mundo da crítica literária.
Em sentido contrário, parece-me que a razão que leva a que muitas escritoras femininas recebam menos reconhecimento do que aquele que desejariam não resulta do facto de serem mulheres, mas de terem sido convencidas a escrever como feministas. Quando o fazem, sujeitam a arte a objetivos políticos, escrevendo não para criar um livro de qualidade, mas para dar voz a uma visão política – logo, torna-se mais difícil que esses textos sejam reconhecidos como bons livros.
Rosa Montero é, aliás, um bom exemplo do meu argumento, pois, apesar da sua condição de feminista, os seus livros e ensaios debruçam-se sobre a natureza e a condição humanas, estando para lá de meros objetivos políticos. O reconhecimento literário que a sua obra recebe é precisamente por essa exploração, que está presente não apenas nos livros ensaísticos ou quase-biográficos (como não sentir a dor da perda em A ridícula ideia de não voltar a ver-te?), mas também nos livros de ficção científica (como ficar indiferente à angústia de Bruna Husky perante as suas memórias artificialmente implantadas, mas simultaneamente tão verdadeiras?). E como não nos revermos na tortuosa reflexão em torno do envelhecimento, que é levada a cabo em A Carne? (Talvez os mais novos não o sintam como nós, mas o tempo resolverá esse problema.)
Isto não significa que as mulheres não desempenhem um papel específico na literatura. Como Montero diz, em A louca da casa, as escritoras ampliam o universo literário (e humano) na medida em que transportam consigo uma perspetiva do mundo que está, naturalmente, inacessível aos homens em resultado dessa coisa tão fora de moda que é o corpo e a biologia. O corpo da mulher condiciona a sua experiência de vida e, por isso, a sua escrita oferece perspetivas diferentes sobre uma vivência que é comum:
“Se os homens tivessem as regras, a literatura universal estaria repleta de metáforas do sangue. Ora bem, são essas metáforas que as escritoras têm de criar e pôr em circulação na torrente geral da literatura. Agora que, pela primeira vez na história, pode haver tantas escritoras como escritores; agora que já não somos exceções; agora que a nossa participação na vida literária se normalizou, dispomos de uma total liberdade criativa para nomear o mundo. E há algumas pequenas zonas da realidade que só nós podemos nomear.”
Ora, uma zona da realidade que as escritoras parecem conseguir descrever melhor do que os homens prende-se com a família e as difíceis relações que dão forma à trama familiar. Tendo ocupado, até muito recentemente, o papel central da dinâmica familiar, as mulheres escritoras parecem mais hábeis a captar a sua essência e, na literatura mais recente, as transformações a que a família tem sido sujeita.
Nesse domínio, Elizabeth Strout é exemplar. A sua exploração familiar tem lugar, desde logo, em O meu nome é Lucy Barton, mas é na malha comum das histórias que atravessam os dois volumes sobre Olive Kitteridge, na primeira e na segunda vida, que isso se torna mais evidente. Dificilmente um homem conseguiria escrever tão claramente sobre o modo como as últimas décadas modificaram as relações familiares no ocidente, transformando expectativas e projetos familiares, sedimentados por séculos de tradições, em dolorosas redescrições sobre o lugar da família no século XXI.
Essas redescrições acentuam um fosso essencialmente geracional e passam pelo desaparecimento do casamento tradicional e da família alargada; pelo número reduzido de filhos, que vão viver para longe depois da universidade e tornam insignificantes as relações entre netos e avós; pelas novas liberdades e excentricidades sexuais; mas, sobretudo, pela destruição do próprio conceito de família enquanto fonte de relações estáveis e permanentes, que gera obrigações para lá dos nossos desejos mais imediatos.
2 O problema das redescrições
Uso a palavra redescrição no sentido cunhado pelo filósofo norte-americano Richard Rorty, que se debruçou sobre o poder revolucionário da linguagem e a possibilidade de transformarmos o modo como percecionamos o mundo através de inovações linguísticas. Novas metáforas, novas imagens e novas descrições permitir-nos-iam ver o mundo de uma nova forma, substituindo visões obsoletas por visões mais capazes de concretizar sociedades com menos sofrimento – ou seja, permitiriam transformar a realidade para criar um mundo melhor.
O argumento de Rorty é sedutor, mas notemos o seu lado escuro e que é reconhecido pelo próprio filósofo em Contingência, Ironia e Solidariedade: um uso revolucionário da linguagem – i.e., uma redescrição – traduz-se sempre num ato de violência para com aqueles que usam e acreditam nos termos que estão a ser redescritos. Como diz Rorty,
“a melhor maneira de causar uma dor duradoura às pessoas é humilhá-las fazendo as coisas que lhes pareciam mais importantes assumirem um aspeto fútil, obsoleto e impotente.”
Considerando esta capacidade de produzir humilhação e sofrimento, Rorty defende que as redescrições devem ficar reservadas para a esfera privada, não devendo ser impostas na esfera pública – pelo que foi criticado por autoras feministas, nomeadamente Nancy Fraser, que consideraram que esta ressalva limita a capacidade de as redescrições produzirem efeitos políticos concretos. As ideias rortyanas traduzir-se-iam, assim, em mero conservadorismo político – e a verdade é que Rorty pode ser entendido como filosoficamente revolucionário, mas politicamente conservador.
Embora esta discussão entre Fraser e Rorty tenha acontecido no final da década de 1980, ela permite-nos compreender a atual disputa no espaço público em torno do conceito de família. Por um lado, encontramos um processo de redescrição da família, que tenta modificar conceções entendidas como obsoletas e é defendido como mais humanista, mais inclusivo e mais progressista. Mas os seus ativistas parecem esquecer que ele produz, inevitavelmente, os resultados de qualquer redescrição e constitui, nessa medida, uma forma de violência e humilhação sobre os outros, ou seja, traduz-se numa forma de crueldade. Não é, assim, surpreendente que seja salvaguardado por um sentimento de superioridade moral: os ativistas revolucionários têm de acreditar que estão moralmente certos pois é essa crença que permite justificar a sua crueldade e a sua indiferença perante o sofrimento e a humilhação que causam.
Por outro lado, as tentativas de redescrever conceitos partilhados geram, inevitavelmente, movimentos de reação que procuram responder e defender-se desses ataques – e que revelarão uma violência proporcional ao ataque recebido. Não surpreende, por isso, o grau de antagonismo que marca a sociedade norte-americana em torno de valores morais: a tentativa de redescrever valores morais e culturais por um dos lados gera uma reação proporcional do lado contrário, com uma violência justificada pela certeza absoluta de que estão certos. Esta divisão, marcada por lutas culturais, parece estar a criar condições para uma guerra civil, como defende Stephen Marche, mesmo que a maioria das pessoas não queira acreditar nisso: “Como ninguém quer o que aí vem, ninguém quer ver o que aí vem.”
Como escapar a este clima de conflito em Portugal, uma vez que muitos parecem decidimos a importar todos os males da sociedade norte-americana?
Talvez possamos começar por introduzir alguma humildade na discussão e pensar que, se o mundo e as suas instituições nos parecem tão errados, é muito mais provável que o problema esteja em nós do que no mundo: afinal, o mundo está cá há mais tempo. Há redescrições da família que podem ser necessárias, mas nem todas as redescrições são positivas.
De seguida, talvez devamos introduzir algum distanciamento e reconhecer que nenhuma luta é justa quando um dos lados recusa ouvir os argumentos contrários, considerando que o insulto e a humilhação do outro são o caminho correto. Como quase sempre acontece, a realidade é muito mais complexa do que os twitters desta vida dão a entender, e dificilmente o lado justicialista terá toda a razão.
Talvez possamos depois introduzir alguma racionalidade na discussão e reconhecer que há bons argumentos e dados empíricos válidos para a defesa da família enquanto instituição de estabilidade. O Moynihan Report é um estudo clássico e de mérito ainda reconhecido sobre as relações de forte causalidade entre monoparentalidade e pobreza; a estabilidade familiar oferece maiores condições de saúde mental; a exclusão social e económica está quase sempre relacionada com a perda de referências familiares; e a família orienta-nos para o reconhecimento dos sacríficos pessoais que estamos dispostos a fazer. Demonizar a família porque ela não se adapta aos nossos projetos de vida é quase sempre um mau caminho.
Em última instância, podemos recorrer aos mais clássicos dos clássicos e comparar as visões da família de Platão e Aristóteles. Embora um deles tenha dito coisas menos aceitáveis, aos nossos olhos, sobre a mulher e a escravatura, apenas um deles, o que aboliu a família, imaginou um estado totalitário.