Talvez seja impossível pensar o século XX sem reconhecer o contributo do pensador alemão Ernst Jünger, que viveu durante quase todo o século (n. 1895 – m. 1998) e vivenciou, como poucos, o espírito do tempo. O seu pensamento foi especialmente marcado pela participação na maior de todas as guerras, de que resultou a escrita de A guerra como experiência interior:
“Foi a guerra que fez dos homens e dos tempos aquilo que são. (…) Eis o que não podemos negar, ainda que alguns o quisessem: o combate, pai de todas as coisas, é também o nosso pai. Foi ele que nos martelou, cinzelou e temperou, para fazer de nós o que somos. E enquanto a roda da vida vibrar em nós, esta guerra será sempre o eixo em torno do qual ela gira.”
Este ensaio, publicado em 1922, foi antecedido pela publicação do livro que o lançou para a fama – Tempestades de Aço – e as duas obras foram tomadas como referência pela geração de jovens que sobreviveu às trincheiras. Nas suas páginas, encontramos uma aproximação à experiência da guerra e o seu impacto na natureza humana, de acordo com um atavismo que o faz afirmar: “As coisas não se passarão de outra maneira, enquanto existirem homens.”
No posfácio ao ensaio, António Carlos Carvalho destaca a controvérsia do argumento, “[s]obretudo nessa época, anos de 1920, com o seu ‘horror a tudo o que seja poder e virilidade’, um tempo cujos ‘novos deuses’ são a massa e o igualitarismo”. E a paz, acrescentaríamos nós no século XXI. Em sentido contrário, Jünger recupera o espírito do pré-socrático Heraclito e a sua valorização do combate e da disputa: “É necessário saber que a guerra é comum e que a justiça é discórdia e que tudo acontece mediante discórdia e necessidade.”
No campo de batalha cósmico, a natureza e a vida do homem resultariam da ação e reação de substâncias contrárias, numa dinâmica que garante a mudança e o reequilíbrio permanente. Como afirmam os autores de Os Filósofos Pré-Socráticos, “Heraclito mostra que, se a discórdia viesse a cessar, então o vencedor de cada competição entre extremos estabeleceria um domínio permanente, e o mundo como tal seria destruído.” Esta seria a essência do mundo, com claras implicações no domínio político.
Na verdade, podemos pensar a história das ideias políticas a partir do posicionamento de cada autor perante a ideia de conflito: alguns aceitaram e valorizaram o conflito, a discórdia, o combate; outros entenderam a disputa como fonte dos problemas sociais e propuseram modelos políticos que permitissem eliminá-la. Os exemplos habituais deste segundo grupo passam pela cidade una que Platão apresenta em República; a vontade geral do espírito comunitário que Rousseau propõe em O Contrato Social; ou o pensamento marxista, que visava a supressão do conflito que decorre da divisão da sociedade em classes. Estes são os clássicos inimigos da sociedade aberta, na formulação de Karl Popper.
Em Al-Qaeda e o significado de ser moderno, o filósofo inglês John Gray acrescenta o positivismo de Saint-Simon e Auguste Comte àquela lista, considerando a sua influência sobre o próprio marxismo:
“O catecismo positivista tinha três dogmas principais. Primeiro, a história é conduzida pelo poder da ciência; o conhecimento crescente e as novas tecnologias são os determinantes fundamentais das mudanças na sociedade humana. Segundo, a ciência permitirá que a escassez natural seja vencida; uma vez conseguido isso, os dois males imemoriais da pobreza e da guerra serão banidos para sempre. Terceiro, o progresso da ciência e o progresso da ética e da política andam de mãos dadas; à medida que o conhecimento científico avança e se torna mais sistematicamente organizado, os valores humanos convergirão cada vez mais.”
De acordo com Gray, o significado de ser moderno consiste precisamente na crença de que o conhecimento científico tornará os países mais semelhantes e pacíficos, eliminando o conflito e criando um novo mundo e uma nova humanidade.
Mas o que resulta de qualquer uma destas propostas filosóficas é que a sua tentativa de superar os conflitos redunda, necessariamente, num estado totalitário: na verdade, a eliminação do conflito implica uma previsão e intervenção permanentes por parte do poder estatal ou uma afirmação absoluta do espírito comunitário. A esta luz, conflito e discórdia surgem como condição de liberdade.
Estamos, então, condenados à disputa e à guerra se queremos liberdade?
Voltemos à história das ideias políticas: aí também podemos encontrar autores que, reconhecendo a naturalidade e a virtude do conflito, propõem outros modos de lidar com ele. Se, como diz Gray, os conflitos não podem ser ultrapassados, podem ser “moderados” – e esta talvez tenha sido a principal conquista civilizacional da modernidade. Na linha da tradição democrática e republicana, que vai de Péricles a Cícero, e da herança liberal de John Locke, Montesquieu e James Madison, o sistema de democracia liberal foi amadurecendo de forma a garantir que os conflitos inerentes à vida em sociedade pudessem ser moderados ou dissolvidos em instituições de modo pacífico. É este o espírito que está presente no mito da paz perpétua que devemos a Immanuel Kant.
De facto, e com todos os seus defeitos, as democracias liberais são um garante de pacificismo: não no sentido de querer eliminar a discórdia e o conflito e, com eles, a liberdade, mas no sentido de querer encontrar soluções não violentas para moderar essa discórdia e esse conflito (seja internamente pela discussão parlamentar; seja externamente pela diplomacia). O problema é que as democracias liberais têm perdido o seu fulgor e recebido fortes ataques da esquerda e da direita mais radicais – que, não por acaso, fazem a defesa da unidade e do consenso, em detrimento do pluralismo e do dissenso. Têm-se tornado, por isso, presas frágeis daqueles regimes para os quais a lição de Heraclito ainda é a principal lição: “A guerra é a origem de todas as coisas e de todas ela é soberana, e a uns ela apresenta-os como deuses, a outros, como homens; de uns ela faz escravos, de outros, homens livres.”
Resta saber se a promessa pacifista da democracia liberal não nos tornou incapazes de lutar pelas nossas sociedades, pelos nossos projetos coletivos, pelos nossos países, pelas nossas liberdades.