Em Verdade e Política, Hannah Arendt recorda:
“Nos anos vinte, Clemenceau estava envolvido numa conversa amistosa com um representante da República de Weimar sobre as responsabilidades quanto ao desencadeamento da Primeira Guerra mundial. Perguntaram a Clemenceau: “Na sua opinião, o que é que os historiadores futuros pensarão deste problema embaraçoso e controverso?” Ele respondeu: “Sobre isso nada sei, mas do que estou certo é que eles não dirão que a Bélgica invadiu a Alemanha”.”
Neste ensaio, Arendt procura refletir sobre as difíceis relações entre verdade e política, elementos que parecem incompatíveis: “a verdade de facto, como toda a verdade, exige perentoriamente o reconhecimento e recusa a discussão, enquanto a discussão constitui a própria essência da vida política”.
A ideia de verdade ocupa um lugar central na cultura ocidental: Arendt afirma que somos herdeiros da procura pela verdade que se afirmou com os Gregos e permitiu o nascimento da ciência; a modernidade afirmou-se em torno da Verdade-com-letra-maiúscula, que substituiu os dogmas anteriores, colocando a Razão e os cientistas no lugar de Deus e dos teólogos; e notemos como o conceito de verdade se revela fundamental para a democracia liberal: a discussão política frutuosa só é possível se partir de factos aceites pelas partes – se discutirmos os próprios factos, o compromisso é posto em causa.
É por esta última razão que o estudo dos regimes autoritários ou totalitários compreende o estudo da propaganda como ataque à factualidade. Como diz Arendt: “Considerada de um ponto de vista político, a verdade tem um caráter despótico. Ela é por isso odiada pelos tiranos, que temem, com razão, a concorrência de uma força coerciva que não podem monopolizar.” Podemos, então, afirmar que o cerne do iliberalismo reside aqui: no ataque à factualidade e na tentativa de fragilizar o próprio conceito de verdade.
É este fator que Timothy Snyder identifica em O caminho para o fim da liberdade, quando analisa o regime de Putin. Este livro, motivado pelos conflitos de 2013/4 na Ucrânia, parece ter sido escrito a propósito dos nossos dias, dada a similitude das circunstâncias. Nos primeiros capítulos, Snyder proporciona uma incursão nas ideias político-filosóficas que contextualizam a visão de Putin, chamando à colação a recuperada influência de Ivan Ilyin e os contributos atuais de Alexandr Dugin e de outros elementos do Grupo de Izborsky, como o fundador Alexander Prokhanov.
Snyder defende que as ideias destes autores, recorrentemente utilizadas por Putin nos seus discursos, consubstanciam um ataque à factualidade. A conceção ocidental de facto e de verdade é entendida como a arma do ocidente liberal para se impor ao mundo, utilizando para esse efeito académicos, cientistas, jornalistas. E se tudo o que o Ocidente diz é propaganda, a resposta adequada só pode ser igualmente a propaganda, com uma utilização adequada da mentira e da incerteza. Afinal, como disse Ilyin, “o conhecimento só dá conhecimento, mas a incerteza dá esperança”.
Snyder entende que as ações de Putin encontram respaldo neste princípio, que justifica, filosoficamente, a gestão de informação que tem sido levada a cabo pelo regime russo. Na prática, sabemos que “[s]e os cidadãos duvidarem de tudo, não podem ver modelos alternativos fora das fronteiras da Rússia, não podem ter discussões sensatas sobre a reforma e não podem confiar uns nos outros para se organizarem a fim de criar mudanças políticas.” E é por isso que a lógica de contrainformação é fundamentalmente dirigida para dentro do país: Snyder analisa a revolução de Maidan e a campanha empreendida por Putin para convencer os seus cidadãos, simultaneamente, de que a Ucrânia estava sob controlo nazi e que a Rússia não estava a invadir o país vizinho.
O trabalho de Snyder tem, naturalmente, os seus méritos, mas sujeita-se a críticas justas. Por um lado, a sua defesa de que a eleição de Donald Trump resultou de uma decisão russa desvaloriza as razões realmente importantes que conduziram à eleição de Trump e que são de responsabilidade norte-americana. Por outro lado, a utilização frequente e excessiva do qualificativo “fascista” (muito comum no mundo académico) para caracterizar todos os autores e todos os comportamentos russos esvazia a palavra de sentido e coloca-nos no centro de um combate em que os dois lados atiram a palavra “fascista” como arma de arremesso. Vejamos em que sentido.
Terá sido o realizador Nikita Mikhalkov a apresentar as ideias de Ivan Ilyin a Putin, reabilitando o autor na Rússia no início dos anos 2000. Conhecido como um russo branco, Ilyin é expulso do país em 1922 e morre em Zurique em 1954. Foi atraído, como muitos na altura, pelo movimento fascista italiano, percecionando-o como uma resposta adequada à revolução bolchevique. Após o final da segunda guerra, Ilyin manteve a sua admiração pelo fascismo, defendendo uma proposta política autoritária como única forma de governar a Rússia: só um líder forte seria capaz de interpretar o espírito do povo russo e salvar o país do caos a que o Ocidente o pretendia condenar. Como é notado em artigo da Foreign Affairs, terão sido estas ideias a seduzir Vladimir Putin:
“Ilyin defendia que a democracia é impossível num país tão grande como a Rússia e que a única configuração de poder possível é uma “ditadura nacional russa”. Aos seus olhos, era impossível unir a diversidade geográfica, étnica e cultural da Rússia sem um forte poder centralizado. Não seria uma ditadura totalitária, mas uma ditadura autoritária. Seria um estado que ensinaria a “liberdade” à sua população, mas limitando-a por forma a que Rússia não se deparasse com anarquia, mas com ordem. Baseado em patriotismo e com um líder poderoso no topo, um sistema assim protegeria a Rússia de revoluções e caos.”
Encontramos o mesmo espírito ideológico em Alexandr Dugin, o pensador russo mais famoso na atualidade (com especial popularidade no Brasil), que apela para uma visão tradicionalista e pré-moderna do mundo. Para Marlene Laruelle:
“A contribuição pessoal de Dugin para a filosofia do fascismo é a afirmação de que a regeneração da nação russa será realizada pela total – e totalitária – transformação do estado russo no palco internacional. O nascimento de uma nova humanidade está, então, intimamente ligado não a uma entidade biológica e cultural (a nação) mas a um estado, a Rússia, e a uma civilização, a Eurásia.”
O termo Eurásia tornou-se, nos últimos anos, sinónimo de Rússia e constitui a peça central da visão geopolítica de Putin. Nesse sentido, e apesar das aproximações a um nacionalismo fascista, Laruelle afirma que é mais correto falar em imperialismo russo, uma vez que estas ideias apelam a uma recuperação da Rússia enquanto império que se estende muito para lá das fronteiras oficiais atuais.
Embora reconheça as raízes de extrema-direita no pensamento de muitos autores russos atuais, no seu livro mais recente, Is Russia Fascist?, Laruelle responde negativamente à sua própria interrogação. No entanto, tem-se consolidado no Ocidente a ideia contrária, fortalecida, antes, pelo apoio de Putin aos partidos e movimentos da extrema-direita no Ocidente e, agora, pelas recorrentes comparações com Hitler.
Do lado russo da barricada, a mesma acusação tem sido arremetida para efeitos de propaganda interna: Putin tem justificado a sua incursão militar na Ucrânia (quer em 2014, quer agora) com o argumento de querer desnazificar o país vizinho (num movimento que Snyder designa como esquizofascismo).
Laruelle recorda a segunda grande guerra para explicar a propaganda utilizada pelo regime de Putin: “Mesmo hoje, setenta anos depois do final da guerra, o consenso em torno da vitória da União Soviética sobre o fascismo na Europa continua uma componente fundamental da coesão social e cultural da Rússia.” A vitória de Estaline ainda remete, no contexto cultural russo, para um momento grandioso do país e Putin recupera esta narrativa, apresentando o conflito na Ucrânia como a continuação da mesma luta contra o fascismo, para garantir o apoio da população: a sua operação militar constitui uma resposta de proteção às Repúblicas de Donbass na continuação da luta eterna do povo russo contra os maus da história. O objetivo da operação militar é, então, desnazificar e desmilitarizar e não deve ser descrita como uma guerra ou invasão.
No espaço público ocidental muitos se ocupam com a tentativa de qualificar a Rússia como regime comunista, fascista ou de capitalismo selvagem. Mas Putin coloca-se para lá dessas classificações políticas que parecem tão relevantes para o ocidente: ele pretende assegurar a grandeza da Rússia, para o que recupera símbolos do czarismo e do bolchevismo sem se comprometer com os seus ideais. O que lhe importa é afirmar-se como o líder forte que permitirá à Rússia cumprir o seu messianismo – a sua missão salvífica para liderar outros países, nomeadamente os europeus, na construção de um novo poder internacional: a Eurásia.