Será difícil pensar politicamente o século XXI sem incluir nessa reflexão o argumento apresentado, em 1996, por Samuel Huntington em O choque das civilizações e a mudança na ordem mundial. O livro desenvolve o artigo publicado em 1993 na Foreign Affairs e apresenta-se como um paradigma explicativo para o novo século que se aproximava. Esta clarificação é importante: Huntington não nos diz que o seu paradigma civilizacional é uma explicação para o funcionamento comum das sociedades; apresenta-o, antes, como explicativo da nova fase histórica, que se sucederia ao final da guerra fria e a séculos de primazia ocidental.

De acordo com este paradigma, os dados disponíveis permitem afirmar que entramos já numa fase de declínio do poder ocidental (processo que pode ser longo) e que, em consequência, “no mundo pós-guerra fria as diferenças mais importantes entre os povos não são ideológicas, políticas ou económicas. São culturais.” Ou melhor dizendo: civilizacionais, se considerarmos que a civilização corresponde ao “mais elevado agrupamento cultural de pessoas e o nível mais amplo de identidade cultural que as pessoas possuem e que as distingue das outras espécies”. Em particular, numa fase em que a procura pela identidade, pessoal e coletiva, assume primazia.

Huntington identifica sete civilizações (sínica, japonesa, hindu, islâmica, ortodoxa, ocidental, latino-americana e africana), que consubstanciam formas incomensuráveis de perceção do mundo, pelo que as dinâmicas políticas dos novos tempos seriam resultado do confronto entre essas civilizações: “Para povos que procuram uma identidade e reinventam uma unidade étnica, os inimigos são essenciais e as inimizades potencialmente mais perigosas surgem nas linhas de fratura entre as maiores civilizações mundiais.”

Não é difícil identificar a posição contra a qual o argumento de Huntington se coloca: em 1989, Francis Fukuyama tinha apresentado um argumento substancialmente diferente no artigo “The end of history?”, que daria depois origem a O Fim da História e o Último Homem, de 1992. Fukuyama avançava a ideia, de inspiração hegeliana, de que o fim do império soviético e da guerra fria significaria a vitória da democracia liberal e uma fase de pacificismo de inspiração ocidental no mundo. Como tem sido notado tantas vezes quanto necessário, a projeção de Fukuyama verificou-se errada, parecendo ocupar um lugar semelhante à oração de Péricles que Tucídides imortalizou: como o canto do cisne, o elogio à Atenas democrática e o elogio à democracia liberal simbolizam o princípio do seu declínio.

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Em análise ao atual conflito, Francisco Assis opta pela expressão “fraturas civilizacionais”, retirando o peso conflitual à expressão de Huntington – mas não deixa de convocar o seu argumento central de que vivemos hoje um período que depõe o pressuposto economicista em que assentava a expansão do modelo ocidental: a ideia de que o comércio entre os estados diminui a possibilidade de conflito e é garantia de paz internacional. Na verdade, como diz Huntington, “[e]m 1913, o comércio internacional atingiu níveis máximos e nos anos seguintes as nações chacinaram-se mutuamente, atingindo um número de baixas sem precedentes. Se aquele nível de comércio internacional foi incapaz de impedir a guerra, quando o conseguirá? As provas existentes não apoiam a tese liberal internacionalista de que o comércio promove a paz.”

Ora, isto coloca em causa o próprio modelo globalista. Em boa verdade, esse modelo começou um claro percurso de declínio com o 11 de setembro, e todas as crises que se verificaram desde então foram agravando esse declínio: a crise económico-financeira de 2007/8 e a crise das dívidas soberanas, a crise dos refugiados, a crise pandémica, o atual conflito militar na Ucrânia. De um ponto de vista europeu, o declínio do modelo globalista respeita uma lógica paradoxal: numa primeira fase, todas as crises parecem reforçar o processo de integração; mas esse primeiro esforço é sempre seguido de fraturas internas (pensemos no Brexit ou no reforço do grupo de Visegrado), que vão fragilizando a pretensão expansionista da UE. Tal não é surpreendente, pois quanto mais aprofundamos o projeto europeu, menor se torna o denominador comum.

Os próximos anos revelarão os impactos desta guerra na União Europeia, mas há um aspeto que podemos já identificar como problemático: a possibilidade de a crise alimentar poder significar novas vagas de refugiados ou migrantes oriundas de países africanos e do Médio Oriente. Basta recordar, aliás, a cadeia de acontecimentos que conduziu à Primavera Árabe, origem das principais vagas de migrantes e refugiados da última década: muito mais importante do que a crise económica que se iniciou nos Estados Unidos em 2007/8, foram as ondas de calor, e consecutivos incêndios, que afetaram a Rússia em 2010 que conduziram àquelas revoltas populares. Resultando numa enorme perda de produção de bens agrícolas naquele que é considerado o celeiro do Norte de África, conduziram a uma brutal subida dos preços e, naturalmente, ao agravamento das condições de vida da maioria da população naqueles países. A imolação do tunisino Mohammed Bouazizi, em protesto contra o poder estatal por se sentir incapaz de sustentar a família, abriu as portas à revolta que proliferou na região.

Se projetarmos o mesmo cenário para a atualidade, podemos antever a instabilidade geradora dos fluxos de migração. Mas que resposta unificada poderá dar a UE a uma nova crise de migrantes e refugiados? Nesta primeira fase, os estados-membros parecem unidos na condenação à guerra, mas que fraturas se abrirão quando passarmos para o momento de lidar diretamente com as suas consequências? Sobretudo, quando se coloca hoje em cima da mesa a remilitarização ou reforço da militarização de muitos estados europeus, se regista o regresso em força da ideia de fronteiras e se tornam mais relevantes as diferenças religiosas.

A vingança de deus, para usar a expressão de Gilles Kepel, é, de facto, um aspeto fundamental para entender o paradigma civilizacional. Huntington interpreta o recrudescimento do fenómeno religioso (manifestado de formas muito diferentes nas várias civilizações) como uma reação antiocidental e refere especificamente o fenómeno russo, citando Suzanne Massie: “Na Rússia o renascimento religioso é o resultado de um desejo apaixonado pela identidade que só a igreja ortodoxa, o único elo não quebrado com o passado milenário dos Russos, pode fornecer.” De facto, a Igreja Ortodoxa sobreviveu ao regime comunista e tem ampliado a sua força, servindo como fator de identidade nacional e de apoio às pretensões imperialistas, como já foi notado no Observador. E interpretado na sua dimensão antiocidental, não devemos menosprezar as próprias ideias eurasiáticas de união de forças com o Islão, na senda do que defende Alexandr Dugin.

A explicação de Huntington quanto ao fenómeno religioso como reação à primazia ocidental parece sensata: o que tivemos na Rússia, durante o século XX, foi a aplicação de um projeto político criado por ocidentais e a partir de fundamentos ocidentais (é, aliás, interessante notar como a proposta comunista só teve aplicação fora do mundo ocidental). E na medida em que esse modelo assentava numa repressão do fenómeno religioso, a contrarresposta, após o afastamento do projeto comunista, só poderia ser o reaparecimento em força do fenómeno que foi reprimido. Como Huntington nota, não se pode comparar o movimento secularista que se sedimentou durante vários séculos na Europa com uma tentativa de eliminação abrupta do fenómeno religioso em outras civilizações – uma tal repressão contará sempre com uma forte contrarreação.

Mas também não devemos fugir à reflexão sobre os impactos do modelo de modernização laicizante do ocidente: o tipo de sociedade que a modernização ocidental origina – mais individualista, mais materialista, mais solitária – tem-se traduzido em fenómenos de esvaziamento espiritual e moral, que são sentidos como graves lacunas.

Nesse sentido, esta guerra não consubstancia apenas um momento de confronto com o outro que pensa de forma diferente, mas pode também levar-nos a um momento de confronto com o nosso próprio projeto ocidental: depois de dois séculos de laicidade, ciência e tecnologia, que tipo de narrativa nos une e satisfaz as nossas necessidades emotivas, espirituais e identitárias?