A invasão russa da Ucrânia uniu o Ocidente na aprovação de duras sanções económicas contra o regime do Kremlin e os oligarcas russos. O governo de Vladimir Putin tem retaliado através de contra-sanções económicas, com vista a mitigar os efeitos das referidas sanções e, simultaneamente, ferir as congéneres dos chamados “países hostis”, e respetivas empresas sediadas nessas geografias.

Estas contramedidas afetam vários setores da economia, sendo diversificadas as “armas” utilizadas para o efeito, e a propriedade intelectual não é exceção.

Sucede que a 6 de março de 2022 teve início uma primeira ofensiva russa com recurso às “armas de propriedade intelectual”, que se insere num movimento que tem sido denominado internacionalmente como “guerra fria da propriedade intelectual”.

Assim, nessa data, o Kremlin aprovou o decreto governativo n.º 299, que incentiva os cidadãos russos a desenvolverem os seus negócios em manifesta violação de direitos de propriedade industrial (patentes, modelos de utilidade e designs industriais) da titularidade de entidades provenientes dos chamados países hostis (onde se incluem, como se sabe, a União Europeia, o Reino Unido e os Estados Unidos da América, entre outros).

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Esta medida funciona como uma espécie de licenciamento forçado dos referidos direitos, sem qualquer remuneração ao seu titular (ou com uma remuneração simbólica), sendo que se especula que medidas idênticas poderão vir a ser adotadas em matéria de marcas registadas, ou ao nível da proteção do direito de autor sobre software (como forma de reação às medidas adotadas por algumas empresas dedicadas ao desenvolvimento de tecnologia, que optaram por revogar ou suspender as licenças dos seus produtos a empresas e entidades públicas russas).

Na mesma senda, a 8 de março, o Kremlin publicou um despacho, suspendendo a aplicabilidade de alguns preceitos elencados no Código Civil russo (diploma onde estão regulados os regimes de proteção de invenções, sinais distintivos do comércio e direitos de autor), em relação a entidades “hostis”. Entre estas disposições listam-se aquelas que conferem proteção aos direitos de exclusivo em matéria de propriedade intelectual.

Moscovo ainda não procedeu à regulamentação específica deste despacho, no entanto, parece cada vez mais certo que, à semelhança do que acontece na China, Bangladesh ou Brasil, a Federação Russa deixará de ser um território onde valha a pena empresas estrangeiras protegerem os seus direitos de propriedade intelectual, na medida em que é o próprio governo que acaba a patrocinar a prática de atos de contrafação.

É, contudo, controvertido afirmar-se que foi a Federação Russa quem “disparou o primeiro tiro” desta guerra fria da propriedade intelectual, uma vez que, no passado dia 1 de março, já o Instituto Europeu de Patentes e, no dia 4 de março, o Instituto de Marcas e Patentes norte-americano haviam anunciado a suspensão da cooperação com os institutos nacionais de propriedade industrial russos e bielorrussos.

Estas medidas, contudo, apenas afetam a agilização de processos de patenteamento e a unificação dos pedidos de registo, não privando, para já, inventores russos de protegerem as suas invenções em qualquer território.

Assim, e apesar de serem substancialmente mais gravosas, as medidas do Kremlin podem enquadrar-se como retaliações e não necessariamente como agressões primárias. Esse facto não retira, porém, gravidade ao problema. Com efeito, a posição de Moscovo (que se suspeita que não fique por aqui) gera um problema imediato: fará sentido os titulares de direitos de propriedade industrial naturais dos chamados “países hostis” continuarem a suportar os custos associados à manutenção desses direitos na Rússia?

Só o saberemos quando houver mais clareza e certeza acerca da magnitude e duração do conflito armado, e correspondente reação ocidental.

Certo é que este “ataque” já fez a sua primeira vítima: a famosa personagem cor-de-rosa Peppa Pig.

O célebre desenho animado, ao qual, por coincidência (ou talvez não), foi dada voz, numa paródia ucraniana, muitos anos antes, pelo então humorista Volodymyr Zelensky, foi indecorosamente copiado por uma empresa russa de entretenimento.

Tanto os direitos de autor sobre os conteúdos desta personagem, como as marcas russas direcionadas ao público infantil e às quais esta empresta o seu rosto, foram reproduzidos sem autorização do seu titular (a Entertainment One UK Ltd), que recorreu à justiça russa.

A ação por violação de marca e direitos de autor, que foi proposta ainda antes da entrada em vigor dos citados normativos do Kremlin, foi decidida celeremente, tendo o juiz russo Andrei Slavinsky proferido uma sentença de indeferimento da pretensão apresentada, fundamentando-a, sem rodeios, na hostilidade das ações dos EUA e países estrangeiros afiliados.

Ainda que não conheçam qualquer desfecho judicial, situações idênticas estão a acontecer com multinacionais como a IKa McDonalds. No caso da primeira, os designs sobre as criações do gigante sueco já estarão a ser imitados por Konstatatin Kukkoev, empresário russo que, na sequência dos prejuízos que sofreu no seu negócio por causa da saída da IKEA da Rússia, decidiu replicar o modelo.

Este empresário já pediu o registo da marca russa “IDEA”, com um grafismo em tudo idêntico à marca sueca, com vista à identificação do referido negócio.

Já a McDonalds enfrenta problema idêntico, tendo também sido requerida a marca “Uncle Vanya’s” por uma entidade russa, que utiliza grafismo semelhante ao da empresa de fast food norte-americana.

Tudo leva a crer que estas marcas serão concedidas, e que os tribunais farão tábua rasa de potenciais ações de infração que venham a ser propostas. Assim, depois de rasgar, sem mais, os acordos de Minsk, a Rússia parece querer dar o mesmo destino a vários tratados internacionais em matéria de proteção de direitos de propriedade intelectual, como é o caso da Convenção da União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial, o Acordo TRIPS/ADPIC ou a Convenção de Berna Relativa à Proteção das Obras Literárias e Artísticas.