No texto anterior escrevi acerca das vantagens de crescer com medo do mundo. Hoje escrevo ainda sobre este assunto mas quero afunilar num caso prático. Ao crescer com medo do mundo, por conta da fé em que fui educado, temia, por exemplo, o que acontecia nas grandes festas que ele tinha. O mundo metia medo porque as suas grandes festas eram assustadoras. Se pensarmos que um concerto tende a juntar grandes quantidades de pessoas, o mundo era assustador nos espectáculos de música popular que tinha.

Apesar de ter sido educado na igreja, ouvia a música que a maior parte da gente ouvia. Via na televisão os shows dos artistas mais célebres. O mais parecido a que assisti primeiro terá sido os Trovante ao vivo com os Ritual Tejo, a 4 de Outubro de 1992 na Portela de Sintra. Era um concerto daqueles que as Câmaras Municipais tornavam gratuitos e que toda a linha de Sintra lá caía. Já tinha ouvido muita música tocada mas assim, um concerto a sério, foi o primeiro.

O mundo era diferente em 1992. Ir a um concerto de rock era perigoso. Ainda mais um concerto de rock gratuito. Era uma época de música tida por pesada e até a exibição de uma banda encabeçada pelo insuspeitamente meigo Luís Represas dava raia. A primeira parte, que foi dos Ritual Tejo, pôs logo o público em mosh pits, em empurrões, enfim, em aventura pura para um jovenzinho de quase 15 anos como eu. O mundo metia medo num concerto e isso fascinava-me.

A porta abriu-se para o meu desejo de mais aventura. O meu grupo de amigos, formado pelos adolescentes da minha idade da Igreja Baptista de Queluz, rapidamente se mobilizou para mais daquela emoção que as festas do mundo nos ofereciam. Não tive maior companheiro do que o Tiago Ramos. Só para encher os dedos de uma mão, lembro cinco concertos adoravelmente assustadores: Corrosão Caótica no Johnny Guitar; Sitiados com Quinta do Bill no Parque Central da Amadora; Ratos do Porão em Vila Franca de Xira; Ministry no Festival T99 no Estádio Nacional, e Diamanda Gálas na Aula Magna.

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O facto de o mundo meter medo nos concertos a que assisti marcou-me. Esse medo era um fascínio também. Naqueles momentos tanto pensava que o povo envolvido em concertos assim iria para ao Inferno (quem sabe até eu…), e pensava ainda que talvez me coubesse a tarefa de, ocupando os mesmos espaços, resgatar as pobres almas daquele circuito através de uma música mais cristã que servisse de antídoto espiritual. Parece uma anedota mas foi e é a minha vida.

O que sinto ter mudado agora? É uma mudança com a qual não contava, admito. O mundo deixou de meter medo. Os concertos do mundo são hoje absolutamente inofensivos. Se antes um concerto dava para a pessoa perder a alma, hoje só serve para embalar a festa que o mundo faz por já não ter alma para perder. Os concertos de hoje são uma continuação amedrontada de um gigantesco ATL. Os concertos do mundo empreendem uma estafada actividade de tempos livres, mantendo na infância quem os frequenta.

Os supostos êxtases dos concertos do mundo são coreografias de ânimo colectivo previamente aprendidas. As pessoas num concerto obrigatoriamente se emocionam, gritando preventivamente ao mínimo gesto do artista porque antecipar a nossa adesão impede que o espectáculo convoque outra atitude que não a conformidade. Se antes os concertos provocavam risco ou mesmo perigo para a integridade física do auditório, agora o espaço tem de ser seguro. O mundo já não mete medo porque o mundo tem de nos proteger.

Um dos primeiros concertos a que os meus filhos assistiram foi o da Dora, a exploradora, no Pavilhão Atlântico (mantenho o nome original do recinto). Quando, há uns meses, os fui buscar ao mesmíssimo lugar, a pretexto do “Circus Maximus Tour” do rapper Travis Scott, a operação foi idêntica: manter jovenzinhos seguros nos shows do mundo. A estrela musical hoje é fundamentalmente um babysitter contratado por pais conscenciosos, até quando parece trazer mensagens subversivas.

Com uma ironia bíblica assinalável, quais são então os espaços que eventualmente resistem a esta prestação prévia de segurança dos espectadores? As igrejas, claro. E quando falo em igrejas, falo, naturalmente, nas evangélicas que são a minha vida. O mundo já não mete medo porque o medo passou a ser metido pelas igrejas. Se há quarenta anos eu assistia a histórias aterrorizantes de bandas satânicas que levavam a juventude à morte, agora vemos séries no streaming em que seitas religiosas destroem a vida das pessoas. O mundo deixa de meter medo e passa a Igreja a fazê-lo. Ir à Igreja ao Domingo de manhã é muito, mas muito mais perigosamente emocionante do que ir a um concerto ao Sábado à noite.

Sei do que falo porque vivo no novo mundo do medo. Um pastor evangélico é hoje para o mundo o que o músico satânico era para mim há quarenta anos. As igrejas evangélicas convocam pânico em parte considerável da população ocidentalmente civilizada. Os shows com os transes mais temíveis estão nas igrejas. O perigo é estar na assembleia dos santos e não nos deboches dos profanos. Quem hoje assusta é Deus, não o Diabo. Assim sendo, posso mesmo deixar de ter medo do mundo.