Ainda domingo precisei do Snob, mas, lembrando-me de que, nos últimos tempos, fechava àquele dia da semana e já não apenas uma vez por ano, no Natal, e não tanto pelo menino Jesus, mas por ser aniversário do senhor Albino, lá confirmei a tempo no moderníssimo Google a suspeita e evitei dar com o nariz na porta. (Perdoem a longa frase de abertura, mas, no Snob, as conversas foram sempre assim: longas, múltiplas.) Fico agora a saber por uma crónica da Ana Sá Lopes que fechara, precisamente, na véspera e sinto o mesmo golpe no estômago que na notícia da morte de um amigo. Aquela amarguíssima sensação de chegar tarde. Bati com o nariz na porta, sim, senhores. O definitivo bater com o nariz na porta.
Depois de descobrir o Snob, não precisei de descobrir mais bar nenhum. Não é que não tenha descoberto – mas já não precisava; foi-se a urgência de saber de lugares novos, do que estava ou não dar, de ter disponível o mapa mental de prontos-socorros para onde ir, àquele dia, àquela hora, tomar qualquer coisa, beber qualquer coisa. O Snob estava aberto todos os dias, a todas as horas que importam, servia refeições até tarde, tinha o melhor bife da cidade, whiskies turfados, standards jazz e Bruce para-todos-os-Springsteen a tocar baixinho, mesas e candeeiros feitos para conversar e a possibilidade sempre mágica de acabarmos a noite noutra mesa qualquer, à luz de outro candeeiro, cooptados para a conversa de outras pessoas, que não esperávamos encontrar. E quando não houvesse ninguém, também era um lugar para se estar sozinho, com o retrato de Humphrey Bogart a olhar-nos com amizade do alto de todos os “gin joints” de todas as cidades, de todo o mundo.
Sorte a minha, descobri-o muito cedo. Não me lembro da primeira vez que lá fui nem exactamente de quem me levou, porque muitos amores, mais do que acontecerem à primeira vista, acontecem mesmo é quando acontecem mais à segunda, e à terceira, e por aí afora. Ali fui um bom quarto de século, porque uma pessoa já vai tendo idade para dizer coisas destas. Uma vez que mudei de casa, a proximidade do Snob foi um dos critérios; quando veio a Covid, garanto, não sem um certo embaraço, que o Snob esteve no top 10 do pouco que me fez, realmente, falta. Àquelas mesas, nasceram revistas, blogues, programas de televisão, curtas-metragens, escreveram-se incontáveis crónicas e reportagens, fizeram-se leituras de peças, dissecaram-se os dias, muitos dias, muito bons e muito maus, brindou-se a tudo. Com um determinado grupo de amigos, os encontros ali eram tão evidentes que, quando os queríamos combinar, bastava indagar via a plataforma que então se usasse, mail, whatsapp, Messenger, pombo-correio: “Snob session?”, ainda agora a melhor tradução que encontro para o equilíbrio perfeito de lazer e trabalho, copos e brainstorm, que ali acontecia. O Snob foi, sem dúvida, o lugar das conversas mais produtivas de uma vida.
Levei muitas pessoas ao Snob; quase todas tornaram-se tão indefectíveis quanto eu. As que não gostaram, que acharam muito escuro, muito antiquado, pouco variado, com muito fumo, ficaram pelo caminho. Era ainda um miúdo a começar a trabalhar em jornais e televisão quando me disseram à mesa do canto da segunda sala: “Não precisas de vir aqui para ser alguém nos jornais ou na TV”. Não precisas destas pessoas, queriam dizer, de me querer meter naqueles círculos. Aceitei o conselho com a gratidão genuína de quem lamenta não ter tido mais mestres na vida, mas como explicar que não ia ao Snob por nada disso, mas verdadeiramente pelo bife, pelo horário, pelo sossego discreto que permitia todos os sussurros, profissionais ou românticos?
Ao longo dos anos, o mundo mudou, mas não o Snob. Como admirei, deliciadamente, essa resistência. Os jornais saíram do Bairro Alto, tantos fecharam e abriram, mingaram nas páginas e no tamanho e nos exemplares e nas mãos dos leitores e à mesa dos cafés, vieram a net, os blogues, as redes sociais, os turistas, o tabaco aquecido, os horários aborrecidamente bem-comportados das capitais europeias, e tudo isso deixava, a pouco e pouco, o Snob cada vez mais marginal. O marginal mais bem-posto da cidade.
Em 2008, quando deixou de se poder fumar em todos os lugares fechados com menos de 150 metros quadrados ou boa extracção de fumo, continuou a poder fumar-se não sei como no pequeno enorme Snob (conheço apenas uma história apócrifa que não me atrevo a contar). Continuou a poder fumar-se por muitos anos, até que eu mesmo deixei de fumar. Não deixei de ir ao Snob – era o que faltava. Eu é que tinha mudado, não o Snob. O Snob só teve de deixar de fumar agora há pouco, quando a lei se tornou ainda menos permissiva, mesmo a histórias apócrifas (sobretudo a histórias apócrifas). Mesmo ex-fumador em recuperação, senti a falta do fumo do Snob. Toda aquela limpeza higienizada, aquele mundo sem cheiro, eram obviamente o prenúncio de que o fim estava próximo. A contemporaneidade preparava-se para passar a porta do 178 da Rua do Século, ao Príncipe Real, sem tocar à campainha.
Há dias, fechava o Lounge e a Time Out fazia um editorial obscenamente lamurioso sobre o assunto. A Time Out, que é das instituições que, bem ou mal mais contribuiu para a Lisboa que hoje temos e que mais dela vive, dos tops e das novidades e das 15 novas gelatarias e dos 10 melhores bitoques e das 20 esplanadas “que tens mesmo de conhecer”, a fazer-se chorosa pela “Lisboa que se perde todos os meses, todas as semanas”. Ridículo. Não é nada disso que lamento aqui. O Snob fecha porque, como diz a língua portuguesa numa das suas ocorrências mais banais e inultrapassáveis, é a vida. O senhor Albino tem 77 anos e nunca quis vender o Snob porque nunca quis, ponto. Ia fechá-lo agora, mas decidiu vendê-lo afinal porque, conta o Público, um cliente habitual não identificado – ó benemérito! – o pôs em contacto com o grupo São Bento, detentor do clássico café com o mesmo nome, e este conseguiu fazer negócio, depois de prometer ao senhor Albino deixar tudo “na mesma”. “Isso para mim já foi confortável”, diz o senhor Albino na mesma peça. E diz tudo. Sobre ele, sobre o Snob, sobre as razões da sua clientela e longevidade.
O senhor Albino que, ao longo de décadas, tudo viu, ouviu e guardou, que até hoje tenho quase a certeza de que nunca ter sabido o meu nome próprio, mas sempre foi tratando por “senhor Borges”, resolvendo assim, de uma só penada, como tratar a mim e ao meu irmão. Que ficou com o segredo do bife quando a dona Maria se reformou, e ia ele próprio fazê-lo para a cozinha, todas as noites.
Vi várias gerações passar no Snob – poupo-as ao name-dropping. Foram passando e morrendo. Nos últimos tempos, a minha tinha enfim conquistado o direito a começar a sentar-se à mesa grande, junto ao balcão. Foi lá que fiquei a última vez, mesmo que não soubesse que era a última vez, jantando um bife com um velho amigo reencontrado e finalizando com uns Taliskers. Tudo certo.
Uma vez, num bate-boca de caixa de comentário de blogues, alguém que não identifiquei chamou-me “Alexandre ‘Snob’ Borges”. Juro que só agora percebo que se referia aos meus hábitos sociais e não às minhas peneiras. Tinha razão. Porque, no fundo, é esse o amigo cuja morte lamentamos quando sabemos do fecho do Snob, mesmo que vá reabrir com outro proprietário: nós próprios. É por isso que ficaram pelo caminho as companhias que não gostaram do Snob; não era bem do Snob que não gostavam, era de mim. Antiquado, pouco variado, cheio de fumo.
Durante tantos anos, o Snob foi o refúgio para os que não adoram a passagem do tempo, mas o tempo vence sempre. Vai continuar aberto com outro proprietário que promete deixá-lo na mesma, mas é claro que não será o mesmo, como nós nunca também somos já os mesmos. Ir vivendo é ir morrendo. Ir passando. Obrigado, senhor Albino; desta vez, somos todos nós, os seus clientes, que o acompanhamos à porta e nos despedimos com aquele aperto de mão. Obrigado, dona Maria, senhor Azevedo, senhor António, a filha do senhor Albino de quem nunca soube o nome, obrigado aos “Snobs” de todas as cidades. Hei-de lá ir ao “novo”, porque como também diz, banal e sabiamente, a língua portuguesa, a vida continua. Mas estou para ver o bife.