As esquerdas adoram manifestos. E se puderem incluir entre os signatários “nomes sonantes” identificados com as direitas é a “cereja em cima do bolo”. Divulgar um documento, a pretexto do estado da Justiça, no perímetro das festividades do cinquentenário do 25 de Abril, só pode ser encarado como um “golpe de asa” dos promotores.

Poderá questionar-se o timing e as circunstâncias, mas é inegável a pertinência do “manifesto dos 50”. Depois, como todos os signatários se têm em boa conta, apressaram-se a reclamar audiência com o Presidente da República para lhe repetirem, presencialmente, tudo aquilo que ele já sabe por escrito.

Uma formalidade evitável e um desperdício de tempo, mas, seguramente, com os media por perto, à saída da audiência em Belém… para dizerem de sua justiça…

De caminho, convirá recordar, por ser justo, que se a Justiça anda perdida em autogestão nos seus labirintos corporativos, não é por falta de empenho presidencial na celebração de um Pacto, comum a todos os operadores judiciários, que servisse de plataforma para uma reforma profunda, desde a magistratura judicial à do Ministério Público.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Foi na habitual cerimónia de abertura do ano judicial, no já longínquo setembro de 2016, que Marcelo Rebelo de Sousa defendeu, pela primeira vez, um “Pacto para Justiça” com a participação de todos, desde os partidos políticos aos operadores judiciários.

Interrogava-se, então, o Presidente, sobre “como é possível converter a justiça numa prioridade política?”, e evocava na solenidade, o anterior “pacto para a justiça”, assinado entre PS e PSD, mais vocacionado para as leis penais, preconizando uma “mudança cultural na sociedade”.

Claro que, em 2016, Marcelo contava com o saber e a coragem de Joana Marques Vidal, à frente da PGR, e não lhe teria ainda ocorrido substitui-la, “à boleia” desse desígnio do governo, por “troca” com Lucília Gago, magistrada senhora de um perfil nos antípodas da sua antecessora.

Afinal, uma escolha de António Costa, que lhe saiu cara e da qual muito se terá arrependido, conforme se percebe nas entrelinhas e nas motivações mais genuínas dos socialistas fiéis, cujo alvo se distingue bem na liturgia plasmada no “manifesto dos 50”.

Recorde-se, a propósito, que para os subscritores do documento, é “inconcebível” que, decorrido quase meio ano sobre a demissão forçada do primeiro ministro, na sequência do comunicado da Procuradoria, esta “nem sequer” se tenha dignado “informá-lo sobre o objecto do inquérito”, nem o tenha convocado “para qualquer diligência processual”. Está tudo dito e têm razão.

Sucede que os partidos, sem excepção, por comodismo ou cobardia, fizeram “orelhas moucas” às intervenções presidenciais junto da “fina flor” das magistraturas, quando ainda dispunha de um crédito intocado. A natureza corporativa dos operadores judiciários, avessos por tradição a grandes mudanças, falou mais alto, e as reformas ficaram “no tinteiro”.

O manifesto encontrou em Rui Rio um activo porta-voz do “núcleo duro” e do espírito que enforma o documento, em nome de um “sobressalto cívico”, ao prometer que “é para ter continuidade, não é um papel que se lançou e acabou”.

O facto é que a situação da Justiça chegou a um tal impasse que, muito antes do manifesto, já o presidente do Supremo, juiz conselheiro Henrique Araújo, tivera o seu “sobressalto cívico”,  durante uma entrevista, em novembro de 2023, na qual reconhecia, frontalmente, que “a justiça não é uma prioridade para o poder político”, acrescentando que “não vejo que haja por parte dos responsáveis políticos a vontade de alterar alguma coisa”, enquanto denunciava, com inusitado vigor, a “corrupção instalada” em Portugal.

Em qualquer país democrático e civilizado, uma afirmação desta natureza, assumida sem ambiguidades  pela quarta figura do Estado, daria “pano para mangas”.

Por aqui, passou-se adiante, a Justiça continuou a “marcar passo”, entregue à sua modorra, e os expedientes dilatórios agravaram-se, na condição de os arguidos terem posses para contratar bons advogados. Em consequência, os riscos de arquivamento dos processos aumentaram, à medida que os prazos se aproximam da prescrição.

Por seu lado, a realidade mediática “tabloidizou-se” e alimenta-se, cada vez mais, de blocos noticiosos, orientados por alinhamentos baços e de pendor sensacionalista. A “espuma mediática” preenche o melhor “tempo de antena”, enquanto os noticiários em prime time das televisões, generalistas ou temáticas, sofrem “tratos de polé”, aproximando-se muito, em certos dias, do formato de um reality show, tanto em duração como em conteúdos.

Neste contexto, o “manifesto dos 50”, aparenta ser mais uma bem-intencionada utopia, incapaz de mudar o que quer que seja. Mas não só.

Leia-se a mensagem que tem implícita, onde consta a “assinatura” de Rui Rio, que há muito sustenta “a recondução do Ministério Público ao funcionamento hierárquico” e o fim do exercício por parte dos seus magistrados de “um poder sem controlo interno ou externo”.

Embora esta reivindicação apareça, de mansinho, às “cavalitas” da “sagrada” autonomia dos magistrados, o certo é que os signatários do documento não escondem o que lhes “vai na alma”, ao exigirem “escrutínio externo” e “avaliação democrática independente” do sistema judicial. A “bon entendeur”…

De resto, entre as “personalidades sonantes” – como alguns media logo as classificaram, com a bajulice do costume -, não faltam ex-governantes, até com o lastro de terem pertencido a executivos de maioria absoluta, que bem poderiam ter cuidado das reformas da Justiça, acolhendo o apelo de Marcelo para a celebração de um Pacto, em vez de se lastimarem em formato de manifesto.

A proposta presidencial estava, obviamente, condenada a “cair em saco roto” e o PS (apesar de Sócrates esperar há uma década para ser levado a julgamento…), só agora parece desperto para os problemas da Justiça, depois de António Costa ser forçado a demitir-se, perante um corrosivo parágrafo, atribuído à inspiração de Lucília Gago, num comunicado sui generis da Procuradoria, no qual se envolvia o ex-primeiro ministro. Até hoje.

Sem ir ao fundo da questão, o manifesto deixa pairar a ideia de que o que move os subscritores, em larga medida, é o desconforto perante a autonomia do Ministério Público, que se pretende “domesticar”, sem outras mexidas estruturais. Valha a verdade que o MP também se tem posto a jeito, fechando-se numa opacidade difícil de entender.

Como gostava de dizer António Costa, “é a Justiça a funcionar” com os seus tempos próprios. Muito elásticos…

A Justiça, embora perra, descobriu que essa morosidade podia ser “compensada” pela avidez mediática, quando figuras públicas estão a ser investigadas. E encantou-se com o “espectáculo” ao qual aderiu, como meio de influência e de pressão na praça publica. E o “segredo de Justiça” passou a ter dias…

Sabe-se bem como as televisões fazem e desfazem políticos. Em nome do espectáculo, já pudemos assistir a um variado sortido de habilidades de governantes, em busca da popularidade fácil, explorando talentos culinários a outras artes, com o mesmo objectivo de “caírem nas graças” do auditório e saírem do estúdio com a visibilidade reforçada.

Sem poder imitá-los, a Justiça faz o que pode para que não se diga que não faz nada, ou que “arrasta os pés” – como diria Pedro Nuno Santos –, consentindo a ameaça de prescrição de processos, por esgotamento de prazos.

A magreza de resultados contrasta, todavia, com o aparato das operações, seja no Porto, em casa de Rui Rio – ou nas instalações do estádio do Dragão, apeado que foi Pinto da Costa nas últimas eleições do clube -, seja no “desembarque” (já repetido…) na Madeira, com recurso a aviões da Força Aérea. E à medida que os processos se eternizam sem solução, é a confiança na Justiça que fica abalada.

Porém, não é disso que trata o manifesto. Tão pouco se enfatizam no documento as “portas-giratórias”, que continuam bem lubrificadas entre a Justiça e a política, o que permitiu até, a uma ex-ministra da Justiça, que se reformasse, com a maior naturalidade, como juíza conselheira do Supremo, sem nunca ter exercido a função, para além do acto de tomar posse. É a Justiça por linhas tortas…

A menos de um mês das eleições europeias, com um parlamento fragmentado e um governo semi-bloqueado pelas oposições, pressente-se que a campanha não será dominada pela invasão da Ucrânia, pela reeleição de Putin na Rússia, pela digressão de Xi Jinping pela Europa ou pelas consequências para o velho Continente e para a NATO do eventual regresso de Trump à Casa Branca.

Com as Europeias a serem vistas pelo “comentariado” como a segunda volta das Legislativas, não é arriscado prever que a política doméstica “adubará” o despique entre candidatos, até pela evidência de serem poucos os que têm currículo nessa matéria.  Falta-lhes mundo e sobra-lhes ambição…

Uma colunista deste jornal, escrevia há dias que ser eurodeputado “é o melhor emprego do mundo”. E descrevia as condições remuneratórias sumptuárias dos eleitos, desde o salário base, aos subsídios diários por cada dia de presença física no Parlamento, em Bruxelas ou Estrasburgo, e para despesas gerais.

Ironicamente, as esquerdas estão representadas por alguns candidatos que sonham com o País fora do euro e da UE. Mas não sonham menos com o seu “pé de meia”, acumulado em cinco anos de mandato.

Ficou célebre o deslize de Marinho Pinto, ex-bastonário dos advogados, quando criticou, em 2014, os salários pagos aos eurodeputados, de que ele próprio era beneficiário “muito acima da média salarial dos cidadãos representados”, aduzindo que o Parlamento Europeu “não tem utilidade. É um faz-de-conta. Não manda nada, apesar de todas as ilusões, todas as proclamações, que são mentiras”.

Confrontado com as suas incoerências, Marinho Pinto, sem abdicar dos privilégios a que tinha direito, alegaria, com “beata” inocência, que “eu sou pobre, preciso do dinheiro, tenho uma filha no estrangeiro”.  Um pai extremoso com espírito de sacrifício….

Imaginem-se agora as histórias de vida, as narrativas estudadas   e o que vão sacrificar os novos candidatos…

Aviso aos leitores (a quem aproveito para saudar e agradecer o acolhimento e o apreço que me têm testemunhado, por escrito, no Observador, e que muito me sensibilizaram): a partir da próxima semana, esta crónica será antecipada, passando a publicar-se regularmente à 2.ª Feira.