O Congresso extraordinário do PSD, que assinalou o reaparecimento da antiga fibra de Luís Montenegro, tantas vezes posta à prova como líder parlamentar na bancada social-democrata – e o de Cavaco Silva, ausente há muito destes conclaves –, teve o mérito de subalternizar a fábula do “golpe de Estado“ do Ministério Público, que houve quem quisesse impingir.

O mote foi lançado por Vasco Lourenço – embora com escassa repercussão mediática –, na vetusta Associação 25 de Abril, que leu nos astros, os contornos do “golpe” gerador da queda do governo, logo definido como “o pior ataque que o 25 de Abril e os seus valores sofrem desde a entrada em vigor da Constituição da República”. Um susto.

Em contrapartida, não lhe ocorreu mencionar o papel das esquerdas – e, em particular do PS – na degradação das instituições, dos serviços públicos, e de um modo geral, da economia, em prejuízo da legítima aspiração dos portugueses de viverem acima do limiar da pobreza.

Para os artífices socialistas, as suspeitas erguidas pela justiça em redor do primeiro ministro – “perseguido” por um parágrafo malsão, num comunicado do gabinete de imprensa da Procuradoria –, criaram um imbróglio insustentável, cujo desfecho deveria ser o oposto do que foi.

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Os factos são conhecidos. Para pasmo de correligionários e de comentadores avençados, o Presidente, em vez de convencer o primeiro ministro a meter no bolso o papel da demissão, apressou-se a aceitar-lhe a renúncia, antes que se arrependesse, negando-lhe, também, a sua substituição pelo ex-ministro das Finanças, migrado do governo para o Banco de Portugal, pelos vistos, em “comissão de serviço”.

E avançou na dissolução do Parlamento, semeando o pânico nas hostes socialistas, ao marcar eleições antecipadas para março, algo recebido como uma espécie de tragédia pelo primeiro ministro demissionário, para quem, num súbito arrebatamento, a iniciativa do Presidente, foi falha de “bom senso”, e gerou uma “crise irresponsável”. Meiguices…

Perante este sarilho, o PS viu-se forçado a “dar corda aos sapatos”, e depressa anunciou três candidatos à liderança, todos diferentes no currículo, nos pressupostos e nas ambições.

A saber: Pedro Nuno Santos, um radical, neto (finalmente  lembrado…) de um sapateiro, em representação de largo espectro das esquerdas, capaz de restaurar a “geringonça” na “oficina da salvação” da Pátria, atrelando outra vez ao PS o PCP e o Bloco; José Luís Carneiro, um moderado, com um discurso apaziguador, para cobrir o “centrão“, disponível para promover entendimentos à direita, para desespero de Pedro Nuno;  e, Daniel Adrião , que aparece de vez em quando em congressos socialistas, e que só ele sabe o que representa.

Desta panóplia de candidatos, que vai da extrema esquerda, ao centro direita, privilegiam-se, por enquanto, o Bloco (com a sua “Cinderela”, na versão pitoresca de Montenegro) e o PCP, talvez em vias de extinção, à semelhança do que aconteceu aos seus congéneres europeus.

A par disso, o PS insiste em André Ventura como “estrela da companhia”, confiando-lhe o importante papel de buldózer de serviço na “terraplanagem” do PSD.

Pouco importa, aliás, que Montenegro, já saturado, repita “ad nauseam”, que não tenciona coligar-se com o Chega. Tempo perdido. No dia seguinte, os jornalistas voltam a perguntar-lhe o mesmo, como se não o tivessem ouvido na véspera.

A persistência faz parte do baú de rasteiras, meticulosamente organizadas pelos gurus contratados pelo PS, para o safarem desta enrascada em que os alegados “vilões” do MP meteram o partido.

Depois, nas sondagens da praxe, o PSD continuará a aparecer frouxo, sem descolar, penalizado sem cerimónia pelos inquiridos, aparentemente rendidos aos encantos dos oito anos de governação socialista…

De facto, à pala das “contas certas”, afundaram-se a Saúde e o Ensino públicos, a Habitação, a Economia e, até, a Justiça, pastoreada durante a maior parte desse período por Francisca Van Dunem, a ex-ministra que conseguiu a proeza de ter sido investida como juíza conselheira do Supremo Tribunal de Justiça, aposentando-se nessa qualidade, sem nunca ter exercido o lugar. É obra.

Descontada esta e mais umas quantas histórias pouco edificantes que ao povo dizem nada, como sabiamente achou António Costa, o que importa agora é defenestrar Luís Montenegro, e cercá-lo do competente “cordão sanitário”.

Depois, há que aproveitar o bónus oferecido pelo Presidente da República, ao aplicar um modelo da dissolução em diferido, permitindo ao governo demissionário um conjunto de “boas acções”, susceptíveis de “engordar” os votos, sem nunca admitir, contudo, o menor eleitoralismo.

O leilão orçamental, aliás, já começou, ungido da mais santa virtude, com o governo a apostar na progressão de carreiras da função pública, e a preparar-se para distribuir uma fartura de apoios, distinguindo, além do funcionalismo, os reformados e pensionistas, associações diversas e outros dependentes do costume.

Trata-se de uma sólida base eleitoral, que o partido precisa de “lubrificar”, para minimizar os danos “reputacionais” do desastre governativo.

Entretanto, aduba-se a narrativa, a várias vozes, dos perigos da extrema direita, enquanto se incensam a destreza e a habilidade política de António Costa.

Inquieto com esta moldura pré-eleitoral, Vasco Lourenço não foi de meias medidas, exigindo que “se, passado um mês, António Costa não estiver constituído arguido, com uma acusação concreta da prática de um crime, o mínimo que se pode exigir é que a Procuradora Geral da República apresente o seu pedido de demissão”. Ou que seja demitida por Belém. Lapidar.

Donde, é imperativo que o STJ encurte prazos e conclua o inquérito, em alta velocidade, arquivando qualquer suspeita que incida sobre o ainda primeiro ministro, obviamente impoluto e sem pecado…

Aqui chegados, poderemos aquilatar melhor os efeitos do alegado “golpe de Estado” do MP, e, como se percebe, já há quem queira “preparar a cama” a Lucília Gago, escolhida por António Costa para suceder a Joana Marques Vidal, mas que não terá sido suficientemente avisada para evitar este “trambolhão” do PS.

Tanto bastou para que o reboliço entrasse de rompante ao MP, provocando estragos inesperados, logo aproveitados por uma diligente procuradora-geral adjunta, Maria José Fernandes, que assinou um texto áspero no Público (ao qual disse não retirar “uma virgula”…) e que lhe valeu “um processo especial de averiguação”, onde escreve “haver quem entenda a investigação criminal como uma extensão de poder sobre outros poderes, de natureza política”, promovendo “buscas cuja utilidade e necessidade é nenhuma”.

O texto caiu mal entre muitos procuradores, sobretudo entre os envolvidos na “Operação Influencer”.

Nesta “guerra intestina”, é de notar, porém, que só depois do presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Adão Carvalho, zurzir na autora do artigo, reprovando-lhe as “claras deficiências de argumentação e erros crassos sobre a questão que fala” é que Lucília Gago se dispôs a quebrar o silêncio.

Fê-lo para rejeitar culpas na demissão de António Costa, e, adicionalmente, para esclarecer os jornalistas de que “não me sinto responsável por coisa nenhuma”. Algo de que já se suspeitava.

E estamos nisto: com o MP em “bolandas”, os “analistas” avençados alternam entre endeusar Pedro Nuno Santos e fustigar Luís Montenegro.

Infelizmente, para esses profetas, Montenegro “trocou-lhes as voltas” e ganhou o Congresso, encorajado pela presença de Cavaco Silva, como um dos principais activos do PSD, que há quase três décadas não se expunha em tais andanças.

Nada será igual depois deste bem-sucedido Congresso extraordinário social-democrata, convocado a pretexto de rever os estatutos do partido. Uma coincidência.

E será, sem dúvida, uma oportunidade histórica para o PSD e para o centro direita varrerem de cena radicalismos serôdios, de braço dado com trotskistas e estalinistas, que aprenderam a exprimir-se em tom suave e sorriso afável.

As vulnerabilidades de Pedro Nuno Santos vão perdê-lo, como já intuiu José Luís Carneiro ao anunciar, pragmático, “pontes” à direita, se sair vencedor da disputa interna.

Se o País se salvar do pântano para onde Costa o arrastou – na peugada de Guterres e de Sócrates –, ficará a devê-lo, paradoxalmente, ao facto de o ainda primeiro ministro se ter rodeado de alguns bons ”amigos de peito”… que o atraiçoaram. Uma fábula, uma vítima, e um filme em “reprise” em exibição perto de si…