Séries clássicas dos anos 90, formatos de entretenimento ultrapassados e até programas de entrevistas reciclados inundam as grelhas televisivas, tanto nos canais tradicionais como nas plataformas de streaming. A estratégia parece simples: a nostalgia vende e atrai audiências. Como exemplo, temos o recente regresso da icónica série juvenil da geração Millennial, Morangos com Açúcar.
Contudo, esta abordagem começa a revelar sintomas de um problema mais profundo e complexo. O que parece uma escolha inofensiva reflete, na verdade, a estagnação cultural e o impacto na saúde mental.
A Nostalgia Como Moeda de Troca Cultural
A constante reciclagem de conteúdos televisivos não é apenas um sinal da falta de criatividade no setor, mas uma obsessão pela previsibilidade e o lucro fácil. Ao oferecer algo que já foi comprovadamente popular, os media minimizam o risco de investir em novas ideias. Porém, ao fazê-lo, limitam a inovação e a exploração de novas narrativas.
Raymond Williams, no seu livro Television: Technology and Cultural Form, argumentava que a televisão, quando utilizada apenas para fins comerciais, cria uma “falsa continuidade” entre o passado e o presente. O espectador é levado a acreditar que a realidade retratada nesses programas antigos ainda é aplicável ao mundo atual, gerando uma desconexão entre o que consumimos e o que de facto vivemos.
Quantas vezes ligamos a TVI ou a SIC e deparamos com programas e novelas repetidas até à exaustão, como se estivéssemos presos numa bolha cultural?
O Ciclo Vicioso: Nostalgia e Saúde Mental
O impacto psicológico desse consumo repetitivo é claro. A nostalgia tem o seu lado positivo: oferece conforto e segurança num mundo cada vez mais imprevisível. Durante a pandemia de COVID-19, por exemplo, muitos recorreram a séries e filmes antigos como um refúgio emocional. No entanto, esta fuga tem um preço.
Estudos mostram que, embora a nostalgia traga alívio, o consumo prolongado cria um ciclo de letargia. A psicóloga Krystine Batcho, especialista no estudo da nostalgia, explica que “quando as pessoas ficam presas ao passado, tornam-se mais propensas a sentimentos de tristeza e insatisfação com o presente” (Batcho, 2018). Ao focarmo-nos no familiar, evitamos o desconforto da incerteza, mas também bloqueamos o crescimento pessoal e a capacidade de abraçar o novo.
Televisão: Alívio ou Estagnação?
Apesar de a televisão já não ser o meio com maior potencial de crescimento, ameaçada pela concorrência dos meios digitais, ela ainda é um dos pilares do entretenimento, sobretudo entre as gerações mais velhas. Se a “caixa mágica” molda a nossa visão do mundo com histórias do passado, criamos uma visão estática da realidade. A falta de inovação cultural afeta diretamente o nosso bem-estar mental. Quanto mais consumimos conteúdo reciclado, mais parece que estamos à deriva num passado inerte, incapazes de imaginar futuros alternativos ou de lidar com os desafios do presente.
Este fenómeno não é exclusivo da televisão. Plataformas como o YouTube também reciclam tendências e memes passados. Contudo, é na televisão tradicional que esta falta de inovação se torna mais preocupante. Quando todos os dias encontramos a mesma programação de há 20 anos, reforça-se a ideia de que o mundo não mudou — mesmo quando, na verdade, ele está a mudar rapidamente, infelizmente, nem sempre para melhor.
Nos anos 60, Marshall McLuhan, no seu influente Understanding Media, descreveu a televisão como uma extensão dos sentidos, moldando a nossa visão do mundo. Se ela permanece focada no passado, como pode a sociedade enfrentar os desafios do presente e futuro? Esse ciclo de repetição reflete uma sociedade que prefere o status quo em vez de arriscar em novas ideias.
A Televisão e as Redes Sociais: Uma Parceria Necessária
Para sobreviver num mundo digital cada vez mais fragmentado, a televisão precisa de se reinventar e integrar-se melhor com as redes sociais. A fusão entre o conteúdo televisivo tradicional e a interação dinâmica das redes pode criar novas oportunidades de envolvimento e inovação. As redes sociais permitem uma ligação direta com o público, oferecendo feedback imediato e permitindo que os criadores ajustem os seus conteúdos em tempo real. Esta interatividade pode revitalizar a televisão, atraindo as gerações mais jovens, e ao mesmo tempo mantendo o público mais fiel, escapando à armadilha da repetição e da nostalgia.
Quebrar o Ciclo: A Importância da Inovação Cultural
Para sair deste ciclo vicioso, precisamos de mais do que nostalgia fácil. Precisamos de conteúdos que desafiem, estimulem o pensamento crítico e ofereçam novas perspetivas sobre o mundo que nos rodeia. Tal como a literatura ou o cinema, a televisão tem o poder de abrir portas para novas realidades e formas de pensar. Mas, para que isso aconteça, os criadores e produtores de conteúdo têm de aceitar o risco de inovar.
É igualmente crucial reconhecer o impacto dos media na nossa saúde mental. Ao consumir continuamente conteúdos datados, reforçamos um ciclo emocional que nos prende a uma realidade que já não existe. Assim, ficamos menos capazes de enfrentar os desafios atuais com criatividade.
Se queremos uma sociedade mais saudável, tanto mental como culturalmente, é vital que os media assumam a responsabilidade de oferecer algo mais do que conforto fácil. Precisamos de novas histórias, novos formatos, novas ideias — só assim conseguiremos romper este ciclo de marasmo cultural que permeia várias áreas do entretenimento.
A televisão, como qualquer arte, tem o poder de influenciar a forma como vemos o mundo e a nós mesmos. Se continuarmos a alimentar-nos da mesma nostalgia, estaremos a abdicar da oportunidade de criar algo novo e melhor. A repetição de conteúdos antigos pode parecer inofensiva, mas está a contribuir para uma estagnação tanto cultural quanto mental.
É hora de os media tradicionais assumirem a responsabilidade de romper este ciclo. Afinal, se a televisão reflete a nossa sociedade, não deveríamos exigir que ela também acompanhe os nossos passos?