Sendo a Direita nacionalista e patriótica, é normal que as direitas europeias, tendo princípios comuns, tenham diferenças significativas de país para país; e que a Esquerda, sendo internacionalista, globalista e multicultural, seja significativamente mais homogénea. Isto é importante para a actual caracterização das forças políticas, uma vez que, como lembra Carl Schmitt, é também o Inimigo que determina o Amigo.
No entanto, como a Política se prende com o ser (a História), que conta muito para o dever ser (a Filosofia), nos últimos trinta anos, com a história acontecida, a Esquerda mudou de filosofia. O fim da URSS e a transição da China para o capitalismo de direcção central fez também com que a Esquerda perdesse os seus Estados tutelares, sobretudo a URSS, que assegurava parte da sua direcção ideológica e logística.
O resultado foi o desaparecimento na Europa dos partidos comunistas; os que restam, o grego e o português, andam pelos 5% nas votações nacionais. Assim, o que ficou ou passou a ser a esquerda radical são partidos do tipo PODEMOS ou BE, com uma ideologia desligada do proletariado, do mundo do trabalho e da luta de classes e voltada para novas clivagens e novos binómios de opressor/oprimido, ou de ofensor/ofendido, com vista à transformação radical da sociedade e do homem. Esta transformação não se quer já fazer através do proletariado e da revolução comunista, mas por via de um processo gramsciano assente na hegemonia cultural e na legislação avançada em favor de minorias sortidas, vítimas de uma opressão levada a cabo, ao longo do tempo, por um opressor-tipo: o ocidental branco, cristão e heterossexual. É um processo assente na vitimização e na denúncia, com origem nas universidades norte-americanas, que procura o domínio das mentalidades através de uma revolução conceptual que ataca, não só as bases ético-institucionais das comunidades humanas – a religião, a nação, a família, a propriedade e as identidades que delas derivam –, mas a própria ideia do humano, até na determinação biológica.
As novas cruzadas
Trata-se, como sempre, de impor uma nova utopia, mas agora por outros meios. Não se recorre já ao terror físico directo e generalizado, aos campos de extermínio, aos Gulags da URSS, aos massacres da Revolução Cultural e dos kmers vermelhos ou da Etiópia socialista de Mengistu. Também já não se matam os católicos, como na revolução mexicana ou na Espanha republicana de 1936. São métodos caídos em desuso, até porque, mesmo que alguns líderes mais zelosos e zelotas os quisessem usar, não teriam muitos seguidores entre as bases, às quais repugna o uso comprometido da violência física. Em contrapartida, estão abertas à denúncia e à participação no moderno sucedâneo do auto de fé e do enforcamento em praça pública e prontas para um bom linchamento colectivo – ético, moral, cultural e intelectual – em nome de novas ortodoxias. Linchamento esse que, tal como a purga estalinista, começa por exterminar o inimigo externo e acaba a exterminar também o exterminador, o inimigo interno.
Vindas de uma cultura libertária – a da revolução sexual dos anos 60, inspirada por Sade e Marcuse – e operando num clima de materialismo consumista, as novas esquerdas, essencialmente urbanas e burguesas, retomaram o assalto ao poder através do domínio das mentalidades.
O objectivo começou por ser catequizar as elites da Academia e dos media, senhoras dos multiplicadores do poder cultural. E a Geopolítica ajudou: com o fim da Guerra Fria e do perigo comunista, os partidos conservadores e cristãos democratas, da direita e do centro-direita, abandonaram os valores nacionais e religiosos e embarcaram num centrão promíscuo com as chamadas esquerdas moderadas. Se não aderiram aos valores da Esquerda, deixaram de os combater.
Paralelamente a este movimento, e na linha da frente da política externa americana, surgiram, há vinte anos, os neoconservadores que, aproveitando o clima de medo no Ocidente criado pelo megaterrorismo, lançaram uma cruzada de globalismo democrático, pretendendo impor, pela força, o modelo euro-americano a todo o universo. O que, por ser contra a natureza das coisas, tinha de acabar mal.
Daqui vieram as guerras perdidas do Iraque e do Afeganistão, e um recuo progressivo da influência militar e diplomática dos Estados Unidos e do Ocidente em áreas importantes como o Médio Oriente e o mundo islâmico, bem como na América do Sul e em parte da África. A missionação democrática armada foi um fracasso e a República Popular da China ganhou aí espaço.
As esquerdas radicais prosseguiram, entretanto, o seu caminho, concentrando-se, até à paranóia, na missionação. O Wokismo, que começou por combater a marginalização dos afro-americanos e a punição e discriminação das minorias sexuais, está hoje, no mundo euro-americano, transformado num activismo agressivo, maniqueísta e simplista, instrumentalizado por zelosos comissários políticos da vitimização, da denúncia e da guetização.
De perseguidos a perseguidores
À semelhança do que aconteceu com outras minorias perseguidas na História – que ao passarem a ser toleradas, passaram a querer ser dominantes e a perseguir–, as novas esquerdas querem agora impor a sua moral de um modo totalitário. Totalitário no tempo e no espaço, porque, não se contentando com o presente, avançam com as suas novas regras e valores para julgar e punir o passado. Assim, depois da vandalização e remoção de estátuas (inspirada talvez na meritória acção purgatória do Estado Islâmico em Palmira), depois do banimento puro e simples, depois do estabelecimento de regras e de elencos para novas ficções fílmicas ou outras, passam agora à reescrita e à revisão das obras. Abriu-se assim todo um apetecível nicho de mercado, para onde concorrem já os vampiros das novas profissões: os activistas dos observatórios e os “sensitivity experts”.
Num desenfreado novo-riquismo censório, aproveitando o medo imposto pela conivência dos políticos e dos capitalistas progressistas e de alguns “intelectuais orgânicos” e usando um catálogo infinito de micro-sensibilidades e de micro-ofensas, os todo-poderosos “sensitivity experts” ocupam agora os melhores gabinetes nas editoras e produtoras. Ou não fossem eles os supervisores ou super-censores que ditam o que se pode ou não pode publicar ou filmar e o que é que, nas obras de autores populares – como Agatha Christie, Ian Flemming, Enyd Bliton, J K Rowlings –, se deve obliterar ou reescrever para não ferir certas susceptibilidades.
Quem são estes “sensitivity experts”, porta-vozes de todas as minorias potencialmente chocáveis e corta-vozes de todos os autores potencialmente chocantes? Quem são eles, que transformam em tímidos amadores da arte os antigos funcionários que, ao serviço da “moral católica e tradicional” do nosso país, pintavam púdicos fatos de banho nas estampas dos calendários e das “revistas para homens”, para não ferir o recato e perturbar o decoro das famílias? É que nesses censórios outros tempos, a literatura portuguesa era estudada nos liceus tal e qual – e por um manual, aliás excelente, de dois professores comunistas: António José Saraiva e Óscar Lopes.
Hoje, um dos alvos da purga dos professores e professoras das universidades norte-americanas são os chamados Estudos Clássicos, antro de “supremacia branca”, de “sexismo” e de “machismo”. Na América, land of the Free and home of the Brave, ter a libertária bravura de remover a Odisseia do currículo escolar é a coroa de glória de muito professor de liceu. Chaucer também já foi varrido de alguns manuais pela mais que evidente “masculinidade tóxica” dos seus Canterbury Tales; e Mark Twain, devidamente admoestado pelo uso de linguagem racista em Huckleberry Finn, está já a ser corrigido. E se Harper Lee achava que ia passar na fina peneira dos futuros “sensitivity experts” com o seu clássico anti-racista Não Matem a Cotovia, estava muito enganada: o livro é obviamente para banir, já que glorifica o papel salvífico do “branco bom”, através do herói, Atticus Finch (interpretado por Gregory Peck na versão cinematográfica).
A literatura e o cinema para crianças têm agora também de ser inclusivos; e como não é fácil inventar novas histórias minimamente empolgantes que obedeçam aos apertados crivos dos zelotas, vá de soterrar em purpurina e arco-íris os clássicos infantis; vá de colorir ou de injectar hormonas e mudar o sexo a velhas personagens ou de introduzir variantes não-binárias nos finais felizes.
Esta é a ofensiva Woke das novas esquerdas, a que nos promete uma nova e auspiciosa humanidade, uma ofensiva por enquanto ainda semi-acantonada na América do Norte e no Reino Unido, mas dando já os primeiros passos na Europa continental, graças ao clima de simpatia encorajadora de entidades como a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu, as Nações Unidas, e à simpatia ou neutralidade benevolente de grande parte dos media. E, sobretudo, graças ao silêncio cúmplice das direitas moderadas e centristas, que, perante tão ponderadas, benignas e inofensivas esquerdas, nada mais lhes ocorre do que condenar veementemente os populismos dos Trumps e Bolsonaros ou a intolerante repressão de Orbán e dos polacos (que, vá-se lá a saber porquê, não querem que a cruzada LGBT lhes invada as escolas).
A conclusão devia ser clara, mas é obscurecida pela propaganda e pela preocupação da generalidade da comunicação social de ocultar os factos que não convêm à narrativa ideológica e de comentar e analisar como causas o que são consequências – os sucessos eleitorais de Trump e de Bolsonaro ou a ascensão dos partidos nacionais e identitários.
São fruto do protesto dos cidadãos abandonados pelas classes políticas estabelecidas no poder, alheadas da realidade e encantadas com o admirável mundo fictício das novas esquerdas.