O título deste texto encerra uma verdade inconveniente – é que um ano de empurrão tecnológico pode fazer mais pela transformação dos processos educativos do que 20 anos de processo de Bolonha. O banho de Zoom em que mergulhou a comunidade educativa para assegurar as aulas online pode não passar, ainda assim, de uma oportunidade perdida. Basta pensarmos, por exemplo, no impacto que os MOOC tiveram sobre a democratização do processo educativo, ao diminuírem drasticamente a dependência dos estudantes face aos professores e à própria sala de aulas, alterando significativamente as práticas de aprendizagem. O seu impacto foi, infelizmente, muito menor sobre o outro lado da equação educativa, onde identifico três níveis – os professores, as instituições e o Estado. Os primeiros incluem alguns entusiastas, sempre ávidos de explorar o potencial inovador das novas tecnologias, e que tantas vezes fazem a diferença, pela melhoria da qualidade pedagógica e pelo contágio que isso provoca em parte dos seus colegas. Atrevo-me, no entanto, a dizer, em benefício do debate que uma boa polémica deve suscitar, que os outros dois níveis não estão a fazer o suficiente para promover esse contágio. Porquê?

As instituições de ensino superior, porque teimosamente continuam a ignorar que os estudantes são a principal razão da sua existência. Fazem-no desde logo no plano simbólico, quando colocam, na sua declaração de missão, a investigação à frente do ensino e da aprendizagem. É certo que a Universidade de Oxford, que em 2020 encabeçou o ranking mundial publicado pela Times Higher Education, tem uma declaração de missão exemplar, que coloca a aprendizagem antes do ensino e ambos antes da investigação, colocando a terceira missão em quarto lugar: “The advancement of learning by teaching and research and its dissemination by every means”. Deixo à consideração dos interessados, na boa tradição da aprendizagem ativa, a tarefa de consultarem a declaração de missão da sua instituição e de a compararem com a de Oxford. Se a desconsideração do comprometimento com a excelência pedagógica se limitasse ao plano simbólico da declaração de missão, os estragos seriam, ainda assim, menores. Mas basta atentarmos nas grelhas que acompanham os concursos de progressão académica para constatarmos a abundância de casos em que a investigação vale o dobro da parte pedagógica e em que a esta é atribuído o mesmo peso da terceira missão. Pelo lado das instituições, julgo que estes dois exemplos chegam para justificar o que digo a encimar este parágrafo e que, infelizmente, não chega a ser polémico, porque é factual.

Falta-nos considerar o lado do Estado, que em 2019 publicou finalmente um Decreto-Lei que “aprova o regime jurídico do ensino superior a distância”. Sem querer ser quezilento, permitam-me acrescentar que não gosto do nome – nem do termo “ensino”, que remete para os modelos instrutivistas do professor como fonte do conhecimento (porque não “educação”, que, sobre ser agnóstico a este respeito, permitiria manter o acrónimo “EaD”?), nem daquele “a distância”, porque acentua uma clivagem que eu me empenho em combater. Quem não frequenta o portal do Diário da República Eletrónico poderá não saber que a publicação das nossas leis é aí acompanhada por um “Resumo em linguagem clara”, particularidade que me parece pouco caridosa para com o texto da lei propriamente dito. O mais interessante, se assim se pode dizer, está, no entanto, naquelas poucas linhas que o Estado escolheu para nos explicar, na dita “linguagem clara”, que “O ensino a distância consiste no ensino em que:

  • “os participantes, docentes e estudantes se encontram fisicamente separados;
  • “existem equipas online que dão apoio tecnológico à participação e interação entre participantes;
  • “não existe limite de tempo e lugar em relação aos conteúdos de ensino;
  • “o modelo pedagógico baseia-se em ambientes virtuais.”

Quem lê estas linhas não ficará certamente surpreendido com o meu desapontamento. E repito – não é por ser quezilento. Mas é que… todo aquele palavreado cava uma trincheira entre dois mundos que deviam conviver harmoniosamente e que estou certo virão no futuro a fazê-lo, desde logo porque a capacidade de ministrar cursos simultaneamente na forma presencial (on-campus) e a distância (online) representa uma vantagem competitiva de natureza estratégica. Não gosto por isso da primeira cláusula, porque no futuro a localização dos intervenientes será irrelevante, e ainda menos da última, porque me parece vantajoso que o modelo pedagógico seja o mesmo, em vez de termos um “presencial” e outro “virtual”. E confesso que me escapa por que razão, na modalidade a distância, não deve existir “limite de tempo e espaço em relação aos conteúdos de ensino”… Do conteúdo da lei também não gosto, mas nem isso surpreenderá quem me lê, por esta altura, nem a apresentação das razões cabe no espaço limitado deste texto – bastando assinalar que o modelo implícito de desmaterialização dos processos educativos é desnecessariamente estreito e que quem ler o capítulo IV da lei compreende facilmente que ela pretende resolver uma questão sistémica de outra natureza.

Melhor teria feito o Estado, em minha opinião, se promovesse uma maior diversidade de abordagens, apostando, antes, em replicar, na área do ensino e aprendizagem, o bem sucedido exemplo da biblioteca do conhecimento online (b-on) na área da investigação – onde liberta as instituições de negociarem diretamente com as editoras de conteúdos científicos, proporcionando-lhes acesso a um contrato realizado a nível nacional. Mais concretamente, o Estado poderia proporcionar às instituições de ensino superior a adesão a um contrato nacional para fornecimento de serviços de e-learning e de avaliação digital, dispensando-as de assegurar serviços próprios que absorvem recursos humanos escassos (conduzindo a um panorama heterogéneo e de muito variável qualidade…), que mais bem empregues seriam no apoio à produção de conteúdos educativos, do que na instalação e manutenção de serviços que podem, com vantagens de racionalidade e economia, ser contratados ao exterior. Precisamos de ver nesta crise uma oportunidade e de a tratar como tal, apostando num modelo que sirva a realidade pós-Covid, em vez de nos limitarmos a engendrar soluções que permitam mitigar os inconvenientes do confinamento sobre a educação presencial.

Compreendo e concordo que é mais fácil exercer o direito de criticar do que o de propor soluções e que, tendo-me outorgado o primeiro, fico de certa forma com a obrigação de o fazer também relativamente ao segundo. Neste sentido e fazendo jus ao ditado que diz que “A melhor maneira de prever o futuro é inventá-lo”, proponho que tomemos como visão de futuro um modelo de ministrar cursos que tenha por objetivo proporcionar a mesma experiência educativa aos estudantes que participam em modo presencial e aos que participam a distância. Estou consciente dos desafios que esta proposta implica, sei que haverá quem a veja como uma utopia e não me surpreenderia até que houvesse quem visse nela uma distopia – mas esta diversidade de pontos de vista promete desde logo avivar um debate que parece estar a passar ao lado da nossa comunidade educativa…

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