Nacionalizar a TAP ou injectar um monumental financiamento na empresa é uma decisão errada com grandes consequências económicas, políticas e morais. A análise económica de uma tal decisão tem sido feita em inúmeros espaços de comentário, pelo que me focarei apenas nas questões políticas e morais. E essas dizem respeito a esta questão: num contexto de pandemia, que ampliou desigualdades sociais já antes profundas na sociedade portuguesa, como aceitar que a classe política opte por resgatar uma empresa e assumir custos imprevisíveis (mas certamente superiores a 1,2 mil milhões de euros) quando falham os transportes públicos, faltam condições para prestar cuidados médicos atempados à população, escasseiam os meios nas escolas para apoiar os alunos desfavorecidos e em risco de insucesso escolar, e o desemprego começa a subir em flecha? É mesmo inaceitável.

Não quero sugerir que o dossier da TAP é simples ou que aceitar a falência da empresa estaria isento de consequências. Mas governar é precisamente isso: determinar prioridades e desenhar soluções eficazes para os desafios sociais e políticos. Ora, sabendo-se que Portugal vive uma dificílima situação financeira nas suas contas públicas e que os recursos orçamentais são por definição finitos, a governação enfrenta ainda o desafio suplementar de ter pouco espaço para erros. Um euro investido no sítio errado não é apenas desperdício, é também um euro que faltará no sítio certo. E com tantos sítios certos para investir — na Saúde, na Educação, no apoio às empresas, na Ciência, na Cultura — parece-me indiscutível que colocar a TAP na esfera do Estado vem com um preço que não se pode pagar: sacrificar necessidades básicas da sociedade portuguesa.

Desde que a pandemia chegou a Portugal, na Saúde, realizaram-se menos 902 mil consultas e menos 85 mil cirurgias. Na Educação, existem evidências de crianças que estão sem contacto com a sua escola desde Março — isto sem contar com as que, tendo tido contacto, retiraram pouco ou nulo aproveitamento das actividades à distância. Nos transportes públicos, a sobrelotação e quebras no serviço são uma rotina antiga — nos últimos anos, em relação à CP e metropolitanos, foram abundantes as queixas sobre supressão de horários, atrasos sistemáticos ou carruagens avariadas.

O que todos estes sectores têm em comum é que, para além de precisarem de um reforço orçamental urgente para suprir novas dificuldades, foram alvo de inflexíveis cativações orçamentais nos últimos 4 anos, que geraram um subfinanciamento e prejudicaram estruturalmente o seu funcionamento. E, desde 2016, sempre que se exigiu mais dinheiro em cada um destes sectores, a resposta foi uniforme: não há dinheiro. O que, por mais desagradável que seja, até pode ser um argumento aceitável. Mas deixa de o ser quando, agora, aparece dinheiro para a TAP. Aqui, a única leitura possível é esta: se só há dinheiro para a TAP é, portanto, porque a TAP é vista pelo governo como mais importante do que cada um dos referidos sectores sociais.

Tem-se reflectido muito sobre as consequências da pandemia e o quanto esta destapou as desigualdades existentes na sociedade portuguesa — na estabilidade laboral, nas condições de vida, nos rendimentos, na capacidade de utilizar recursos digitais, no acesso a cuidados médicos ou a testes Covid-19. O que não se tem sublinhado suficientemente é que a pandemia também alargou o fosso que separa as elites (económicas, sociais e políticas) da população. Dar privilégio ao investimento na TAP não seria apenas má gestão. Seria, acima de tudo, governar à medida da bolha em que se fecharam certas elites. Num contexto de profunda crise, só dentro dessa bolha social pode a TAP soar mais importante do que uma rede pública de educação a funcionar, transportes públicos fiáveis e seguros, e cuidados médicos universais e sem atrasos. Afinal, nas suas vidas e nos seus círculos, essas elites não têm os filhos nas escolas públicas, não usam transportes públicos e não frequentam o SNS. Tudo bem — são escolhas legítimas. Mas o país e os seus desafios não podem ficar reféns dessa bolha social. Para além de todas as consequências económicas e financeiras, o actual debate sobre a TAP mostra que isto não é só um problema ideológico. É já um problema de falta de noção.

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