Não vou escrever sobre o sr. Bolsonaro, o alegado fascista que, com os votos de milhões de alegados fascistas, vai liderar um governo de alegados fascistas e estabelecer o alegado fascismo no Brasil. Digo apenas que é triste ver uma nação que até aqui se distinguia pela prosperidade e pelo sossego arriscar cair na intolerância e no ódio. O lado positivo é que Portugal não arrisca nada: já caiu.

Na noite de Domingo, as eleições brasileiras interessaram-me menos do que as respectivas reacções deste lado do mar. Nas “redes sociais”, fervorosos inimigos do racismo e da xenofobia desataram a insinuar com variável franqueza a deportação da maioria de brasileiros que, por cá, votou no sr. Bolsonaro. Houve quem recomendasse a varridela incondicional dos brasileiros. Houve quem sugerisse trocá-los por brasileiros bonzinhos e predispostos à fraternidade. E houve quem prometesse o despedimento imediato da empregada doméstica, essa fascista que preferiu entregar o país dela ao sr. Bolsonaro do que à associação caritativa chamada PT.

Por regra, estas manifestações de harmonia universal partiram de anónimos (que urge promover à notoriedade). Algumas, porém, saíram de gente que, talvez por causa da flagrante sofisticação, ocupa cargos políticos ou distribui palpites na televisão. Mesmo o prof. Marcelo, o exacto avesso do populismo, concedeu uns resmungos contra o populismo, a intolerância, a xenofobia, o chauvinismo e o radicalismo que, além de um desastre diplomático, são um insulto à escolha livre de milhares de habitantes do território a que em teoria preside. À primeira trombada na realidade, os fanáticos da indiscriminação discriminam com curioso fanatismo. Não foram muitos? Foram demasiados.

Aliás, a questão não peca por excesso, e sim por defeito: quantos dos que não ofenderam pública e desalmadamente os eleitores do sr. Bolsonaro estavam, e estão, mortinhos por isso? Sem grande risco, aposto na esquerda em peso, salvaguardando as excepções que se contam pelos dedos de Lula, o Generoso. É hábito velho. De Reagan a Passos Coelho, com escalas em Sá Carneiro, Thatcher, os Bush, Cavaco, Merkel e o sr. Trump, a esquerda anuncia o advento das trevas sempre que um dos seus não é designado para apascentar os simples. E os simples que, nas urnas, caucionaram a tragédia são cúmplices da dita, logo indignos da cidadania.

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Evidentemente, o problema da esquerda com o sr. Bolsonaro e com os eleitores do sr. Bolsonaro não se prende com eventuais restrições à liberdade no Brasil. É ridículo ter de lembrar que as restrições à liberdade noutras paragens nunca incomodaram a esquerda. Pelo contrário. Nos paraísos aprovados pelas boas consciências, a censura oficial ou oficiosa, os saneamentos, as perseguições, as detenções, a corrupção, a miséria e a genérica opressão dos infiéis são minudências ocultadas, ou desvalorizadas enquanto indispensáveis à implantação da Felicidade Eterna. Não há que enganar, embora o engano seja língua franca: fala-se na ditadura que aí vem para dissimular a ditadura que deveria vir, invoca-se a “política do medo” para assustar os impressionáveis, lamenta-se o ódio para odiar à vontade, finge recear-se que corra mal por se recear que corra bem. Agitar tiranos hipotéticos é estratégia típica de tiranos comprovados. Os autodenominados democratas não querem saber da democracia, mas mandar em nós.

De resto, uma democracia funcional é o pior pesadelo dos autodenominados democratas. Onde já se viu as pessoas decidirem o futuro pela própria cabecinha, com frequência mal informada e carente das luzes que abrilhantam por exemplo o dr. Louçã? Não admira que, durante a semana, diversas “personalidades” desfilassem preocupação com a libertinagem que reina no Facebook e no Twitter, antros em que a Verdade não beneficia do filtro da RTP, da Sic, do “Público”, do “Expresso” e demais faróis. É em faróis assim que os drs. Louçãs da vida, que ocupam a existência a venerar atrocidades incomparáveis aos maiores desvarios que o sr. Bolsonaro venha a cometer, ensinam o povo a pensar correctamente, leia-se de acordo com eles. A chatice é que raramente o povo aprende, pelo que se impõe o castigo.

A propósito de castigos, os últimos acontecimentos convenceram certa “direita” de que a eleição do sr. Bolsonaro, depois do sr. Trump (e do “Brexit”), preparam Portugal para a chegada de um Messias e a sublevação do “homem comum”, enfim cansado de enxovalhos. Não sou tão optimista. Primeiro, porque apesar da propaganda nem o sr. Bolsonaro é o sr. Trump, nem o Brasil, há décadas cenário de uma espécie de guerra civil, é a América. Segundo, porque os portugueses são óptimos a aderir à última hora a golpes de Estado e terríveis a golpear sozinhos essa sagrada entidade. Terceiro, porque a raiva que o sr. Bolsonaro e os eleitores do sr. Bolsonaro inspiraram nas castas indígenas não deixa dúvidas: a esquerda que há três anos tomou conta disto é extrema nas políticas, na mentira, na manipulação, na força, no descaramento e na gula. Ainda que, por milagre, o famoso “espectro partidário” trouxesse um dia a alternativa que a actual União Nacional não consente, não me parece que os senhores no poder abdicassem jovialmente deste por via de processos democráticos ou mariquices afins. Hoje como ontem, sentem que o regime é deles. A diferença é que hoje têm razão, e não estão dispostos a perdê-la. Custe o que custar.