Após décadas sob um regime ditatorial marcado pela repressão e pelo autoritarismo, a queda de Bashar al-Assad representa um marco histórico que poderá redefinir a geopolítica no Médio Oriente. Para muitos, este é um momento de vitória popular, após anos de miséria, pobreza extrema e uma devastadora guerra civil iniciada em 2011. No entanto, a história ensina que a queda de regimes autoritários raramente se traduz em estabilidade imediata. O colapso do regime de Assad pode abrir caminho para uma nova era de esperança, mas também traz o risco de vácuo de poder, ascensão de fações radicais e perpetuação do sofrimento. Hoje, o povo sírio celebra, com justiça, a queda de um ditador sanguinário. O futuro, porém, permanece incerto: será este o início de uma nova era de paz ou o começo de uma radicalização de um país que parece condenado ao fracasso?
Depois de décadas de sofrimento do povo sírio, e uma Guerra Civil pelo meio, serão certamente incontáveis os episódios de terrorismo em território sírio. Entre eles está aquele que foi certamente o maior ato de terrorismo cometido por Bashar al-Assad, quando em 2013 lançou contra os próprios civis sírios, a fim de conter a ofensiva da oposição ao regime, foguetes com agentes químicos que mataram centenas de pessoas, entre elas crianças indefesas que viram o seu futuro destruído, revelando a face mais cruel e desumana de um ditador terrorista, capaz de massacrar o seu próprio povo para se manter no poder. Quando falamos da queda de Bashar al-Assad não falamos somente de uma vitória do povo sírio. Falamos de um triunfo da moralidade e de uma derrota do terrorismo.
Contudo, o ex-ditador está agora seguro em Moscovo, enquanto milhões de sírios continuam e continuarão durante muito tempo a sofrer com as consequências dos seus hediondos crimes, demonstrando que a justiça continua a ser um conceito muito distante para certos povos. Também aqui, deve a comunidade internacional procurar agir por forma a garantir que Bashar al-Assad não sai impune, embora o Direito Internacional e as suas organizações tenham demonstrado ao longo dos anos a sua incapacidade em responsabilizar eficazmente os responsáveis por crimes contra a humanidade e de fazer chegar a justiça internacional junto de povos que não conhecem tal ideia.
A reconfiguração da Geopolítica no Médio Oriente
A queda do regime não representa apenas a derrota de Bashar al Assad. Este foi um golpe profundo para as ditaduras que sustentaram o ditador sírio ao longo dos anos, inclusive para aquele que neste momento o protege bem debaixo das suas barbas, em Moscovo. Destacam-se três grandes derrotados:
Irão: O regime de Teerão saiu como um dos principais derrotados, por estar envolvido de forma ativa na complexidade em torno das relações internacionais no Médio Oriente. Aliado do regime derrubado pelos sírios, o Irão vê agora enfraquecido o Eixo da Resistência, um grupo anti-Ocidente, composto por milícias xiitas como o Hezbollah, deixando de contar com o apoio da Síria para transporte de armamento através de um “corredor” livre que tem permitido ao Irão fortalecer a sua posição no Médio Oriente como um regime feroz na oposição aos seus inimigos do Ocidente e dos seus aliados naquela região, como Israel. A Teocracia de Teerão sai assim enfraquecida numa altura em que não há espaço para recuos num Médio Oriente cada vez mais instável.
Hezbollah: Outro dos aliados do regime de Bashar al-Assad e do Irão, o Hezbollah, também sofre com a queda do ditador sírio. Os terroristas que se consolidaram como a principal força no Líbano tinham como um dos principais aliados para fornecimento de armas a Síria de Assad. Num momento de confronto direto com Israel, não há como negar que a queda da Síria como a conhecemos nas últimas décadas e o consequente enfraquecimento do Irão na região é um duro golpe para o Hezbollah.
Rússia: Fazendo parte de um bloco anti-Ocidente, Vladimir Putin tinha até aqui visto em Bashar al-Assad um aliado importante para impedir o avanço dos Estados Unidos no Médio Oriente, através do fortalecimento da ditadura síria. Para além disso, a Rússia está inserida diretamente no território sírio, com a presença de bases militares estratégias, desde a base naval em Tartus, à base aérea em Hmeimim. Com a queda do regime de Assad e o avanço das forças radicais que expulsaram o ditador e o obrigaram a fugir para Moscovo, Putin vê agora enfraquecido não só o conjunto de países que procuram contrabalançar o poder dos Estados Unidos no Médio Oriente, como a própria presença militar russa no terreno. Numa altura em que a Rússia cada vez mais se afunda numa guerra que estava prevista como uma operação militar de três dias, Vladimir Putin sofre aqui mais uma humilhação. Afinal, o inquestionável poderia russo está, mais uma vez, em questão.
Mas se alguns perderam com a queda de Assad, outros saíram a ganhar. Depois de dar destaque aos principais derrotados, importa destacar também quem beneficiou do acontecimento histórico na Síria.
Estados Unidos da América: Seria algo incomum se não estivessem, de certa forma, envolvidos num conflito com repercussões globais, ainda para mais numa região como o Médio Oriente, que ao longo das últimas décadas tem sido um foco de instabilidade para os americanos. A queda de Assad enfraquece dois dos maiores adversários estratégicos dos Estados Unidos: o Irão e a Rússia. Com a eliminação de um regime hostil à influência americana no Médio Oriente, os americanos podem aqui aproveitar para explorar a possibilidade de aprofundar a intervenção na região, seja ela militar, caso continuem a escalar os conflitos, seja política, nomeadamente contribuindo para a implementação de regimes democráticos no Médio Oriente com o seu apoio. A derrota de Putin no Médio Oriente pode também significar um maior poder de negociação por parte da Ucrânia, cujo apoio reside, em grande parte, nos norte-americanos.
Israel: Seria um erro grosseiro falar de vencedores ignorando quem mais ganhou com a queda do regime sírio e o enfraquecimento do Irão e do Hezbollah na região. Benjamim Netanyahu deverá certamente ter recebido com ânimo a notícia, quando soube que a ameaça militar ao Estado de Israel está agora assumidamente enfraquecida. Nos últimos anos, entre outros tantos argumentos, os israelitas defendiam que a aliança entre o Irão e a Síria de Bashar al-Assad significava um perigo para a segurança do povo israelita. Numa altura em que o conflito tendia a intensificar-se, as forças israelitas suspiram de alívio, por enquanto, ao constatarem a perda de influência direta de Teerão na Síria.
Turquia: Ainda que não esteja a ter a atenção merecida pela imprensa internacional, os turcos podem também beneficiar da atual conjuntura para intervir junto daquela que tem sido para Erdogan uma ameaça à soberania territorial e à segurança da Turquia: a questão curda. Estima-se que o número de curdos na Síria esteja à volta dos 15%, representando mais de dois milhões de pessoas. A queda do regime abre a porta a uma maior intervenção dos turcos no norte da vizinha Síria, com o objetivo de conter um possível avanço das forças curdas, que depois de décadas de repressão, podem encontrar na queda de Assad uma oportunidade de avançar na sua luta pela autodeterminação.
Uma vitória incompleta: qual o futuro para o povo sírio?
Embora à primeira vista o atual contexto possa parecer uma vitória inequívoca para o povo sírio, importa refletir sobre a possibilidade de a queda do regime se revelar traiçoeira, com o surgimento de grupos radicais como o Hayat Tahrir al-Sham (HTS), uma fação jihadista com raízes na Al-Qaeda.
O vácuo de poder que se instala depois da queda de um regime de décadas pode resultar numa intensificação da instabilidade em território sírio, com uma luta pelo poder que se pode agudizar ainda mais, agora que não existe um poder central capaz de conter revoltas e ameaças. Essa possível luta por poder pode desencadear uma série de eventos que farão do povo sírio refém de ainda mais radicalismo e instabilidade.
A prioridade deverá passar por garantir que não acontece na Síria aquilo que aconteceu no Afeganistão dos anos 90, em que a retirada de tropas soviéticas e a posterior queda do governo comunista mergulhou o país numa violenta guerra civil, deixando espaço para a ascensão dos Talibãs. Para isso, a comunidade internacional, nomeadamente o mundo democrático, deve unir esforços para assegurar que a transição de poder ocorre de forma pacífica, e que o novo líder sírio cumpra os critérios de respeito pelos Direitos Humanos, na construção de um futuro democrático e pacífico para os sírios.
Por isso, ainda que a queda de Assad seja, sem dúvida, um marco na história do Médio Oriente, o verdadeiro triunfo chegará no dia em que os sírios tiverem em mãos a real hipótese de reconstruir o seu país e instaurar um regime democrático, baseado no respeito pelos Direitos Humanos e na segurança de um povo que durante décadas tem sido massacrado injustamente, livres de conflitos violentos e de guerras que vitimizam inocentes na sua mais pura e desumana crueldade.
Caiu mais um ditador, mais um criminoso terrorista, mas o mundo democrático não deve baixar a guarda, porque a luta pela liberdade está longe de terminar, e o povo sírio, inocente refém de um criminoso ditador, merece que essa luta não desarme.