Há o cérebro e há o pensamento. O cérebro cria o pensamento. E o pensamento organiza e estabiliza o cérebro. Já o comportamento é o meio através do qual o pensamento passa do dentro para o fora, se expressa e se partilha. Depois, há a palavra. Que é dentro e é fora. Que liga cérebro, pensamento e comportamento. E os alinha. E afina.

Vivemos num tempo em que a palavra pensar entrou em desuso. E em que o comportamento domina tudo aquilo que o digital entende considerar como vida mental e saúde mental. Mas reduzir o pensamento ao comportamento é o mesmo que privilegiar o resultado ao processo. Como se o destino valesse mais que o caminho. Ou as soluções da última página fossem sempre melhores que o raciocínio e o método com que se chega até elas. Como se os resultados, as audiências ou os números finais — muito mais do que as dúvidas, as perguntas ou o modo como, de erro em erro, se aprende a pensar — atestassem o pragmatismo e a eficácia da forma como se pensa. Separar o comportamento do pensamento parece dar a entender que as perturbações de comportamento se estruturam à margem dos viés do pensamento. E que ele não será incontornável para mobilizar os recursos indispensáveis para as ultrapassar.

Vivemos um tempo em que consolidámos o trajecto que vai da ciência até à técnica, que fez com que, com ela, a vida se tenha tornado muito mais fácil, menos imprevisível e mais domesticável. Um tempo em que passámos a ter um computador de bolso capaz de nos responder às questões mais esdrúxulas que entendamos colocar-lhe. Capaz de prever o tempo que vai fazer como quem adivinha o futuro. E com um GPS que nos torna, todos os dias, donos do nosso destino. Um tempo que nos favorece com tantos instrumentos capazes de nos darem a ilusão de sermos tão mais inteligentes do que somos que, na maior parte das vezes, eles acabam por iludir os modos diversos com que fugimos de pensar.

Estamos tão viciados em soluções técnicas que tornem a vida mais fácil que, progressivamente, a psicologia deixou de ser um processo compreensivo e escorregou para uma deriva com a qual deixou que a saúde mental se colasse ao “como controlar” ou ao “como resolver”. Que a encaminhou para um fast-food de conselhos e dicas, para o “faça você mesmo” (a partir de sites ou de tutoriais) ou para bibliotecas de auto-ajuda que cresceram e ganharam escala. E que, agora, se centram no controlo dos medos, da raiva e das emoções como se a psicologia servisse mais para controlar e controlar do que para sermos livres. Por mais que haja quem, em nome dela, apesar do ênfase no controle do comportamento, nos fale da felicidade. Como se o pensamento se tornasse tanto mais eficaz quanto menos ele se utiliza para pensar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É verdade que, por força de toda a revolução que as novas tecnologias trouxeram à comunicação e aos dados, este é um tempo em que a realidade parece ter deixado de ser o que é, passando a ser só uma opção para o pensamento. (O que o confunde.) Tal é a importância que os algoritmos passaram a ocupar na nossa vida, o que nos faz imaginar que, consoante o perfil das nossas pesquisas, assim a realidade acabe por ser aquilo que querermos que ela seja. Tornando-se “personalizada”. “Prê-à-porter”. Muito mais próxima daquilo que nós imaginamos do que ela é. Muitíssimo mais tutelada do que pode parecer. Cheia de open spaces e cada vez mais enfadonha e burocrática. Vivemos num tempo em que somos muito mais controlados e, ilusoriamente, mais omnipotentes. Com se a liberdade fosse dispensável para o exercício de pensar.

Sem darmos por isso, e por força destes constrangimentos todos, fomos sendo encaminhados para a sensação que as coisas ou serão pretas ou brancas. Ou uma coisa ou outra. Ou, em relação a cada uma elas, fossemos ou contra ou a favor. Visto desta forma (eu sei que isto parece quase absurdo) o pensamento parece ser supérfluo diante de oposições tão básicas. Mas, indo por aqui, o mundo não tem como não se tornar senão extremista. Porque privilegia os extremos e não tanto todas as nuances ou o imenso pantone que os liga e lhes dá harmonia, robustez e movimento. Um mundo que se reparte desta maneira não tem como não ser xenófobo. Porque aquilo que é diferente do que gostamos mais depressa merece um esgar aversivo ou uma classificação negativa do que uma reacção de surpresa ou de espanto que nos perscrute para o contraditório que isso pode trazer ao nosso crescimento. O mundo desvaloriza o pensamento e acarinha o comportamento porque se dá melhor com pessoas bem comportadas do que com aquelas que o pensam, o põem em causa ou o fazem crescer.

Em cima de tudo isto, este é um tempo de influenciadores. De líderes. De coachs, motivadores e inspiradores. Todos muito mais centrados no comportamento que no pensamento. A ideia que eles têm da psicologia é mais ou menos rudimentar. Dizem às pessoas que elas são óptimas. Que a vontade faz tudo o resto que a realidade parece obstruir. Que as relações são, no essencial, mais ou menos secundárias porque indispensável será amar-mo-nos a nós. Que os erros que elas cometem são, unicamente, “coisas menos boas”. Que tudo o que não é empoderamento é culpa. E que para cada problema há sempre um solução simples, rápida, comum a milhões de pessoas diferentes e, claro, muito fácil. O que foi contribuindo para se alimentar a ideia de sermos tanto melhores quanto menos precisamos uns dos outros e mais auto-suficentes nos tornarmos. Que, hoje, alimenta o crescimento dos nossos filhos e nos tutela a nós, em muitíssimos momentos.

A ideia de sermos auto-suficientes é engraçada. Em primeiro lugar, este elogio do “auto” faz com que fosse de esperar que dessa forma fossemos muito mais do que só suficientes. Não faz de nós excelentes. Nem bons. Ou singulares. Só suficientes. Numa escala de zero a vinte, ficaremos pelo 10, pelo 11 ou, quando muito, pelo 12. Mas, todavia, alegres e positivos. Optimistas. E, obviamente, nada menos que felizes. O comportamento, em vez do pensamento, faz magias.

Porque será, então, que este parece ser o tempo do stress, do burnout ou dos ataques de pânico? O tempo da solidão, da depressão e da angústia? Ou o tempo em que a saúde mental parece ir colapsando e os psicofármacos se consomem aos milhões?

Como não podia deixar de ser, a psicologia que se seguiu à descoberta do método cientifico aproximava-se, por exemplo, muito da medição dos tempo de reacção. Sempre com a ideia que a subjectividade humana atentaria contra a veleidade da psicologia como disciplina científica. Foi por isso que, apesar das divergências que os separavam, os psicólogos do comportamento tentavam contornar a subjectividade resumindo a avaliação psicológica à resposta reflexa que decorria de um estímulo. E o próprio Freud aspirava a fazer da psicologia uma disciplina vizinha da neurologia.

Mas, no entretanto, duas guerras mundiais trouxeram consigo quer os “loucos anos 20” quer o “faça amor não faça guerra” dos anos 60. Mas avivaram o amor pela vida e a insubmissão do pensamento porque os comportamentos de destrutividade, de violência e de loucura  foram banalizados pela guerra. Falar, naquela altura, do inconsciente como um lugar obscuro, impulsivo e animal dentro de nós contribuiu para nos perscrutarmos sobre as forças do nosso pensamento que, com a guerra, afastaram da clarividência, da bondade, da sabedoria e da justiça pessoas como nós. Mas, ao mesmo tempo, soltar o pensamento ajudou-nos a falar do sonho, do desejo, da sexualidade e dos conflitos que convivem em nós. E da forma como as pessoas, para o bem e para o mal, nos formatam e nos tornam plurais. Nos trazem até ao amor e à beleza. Como promovem a dor e o traumatismo. E fez com que a palavra e a relação clínica se transformassem num instrumento de conhecimento, de terapêutica e de mudança. E foi aí que a doença mental, nas suas diversas nuances, se tornou acessível à psicoterapia, com o impacto revolucionário que isso trouxe à saúde mental. Dando-lhe humanidade.

Mas os psicanalistas não foram tão capazes assim de ler o mundo em mudança à sua volta. E por força duma formação menos cientifica e mais “ideológica”, não se deixaram crescer relativamente a uma realidade que ia mudando muito depressa, sobretudo depois do inicio do segundo milénio. Nos anos 80, Reagan e Thatcher trouxeram um modelo liberal à economia  do bem-estar social do pós-guerra, fazendo com que o individual prevalecesse sobre o social. As torres gémeas colapsaram em 2001. Em 2007, o iPhone passou a existir, mudando de forma radical toda a comunicação humana. E, nesse mesmo ano, a crise do subprime e o seu impacto no sistema financeiro internacional, em 2008, a primeira transação de bitcoin, em 2010, ou a pandemia de 2019, trouxeram, num curtíssimo espaço tempo, tantas exigências de mudança que conjugaram o medo e os recursos da tecnologia com que o comportamento foi ganhando espaço ao pensamento. E todos estes factores foram-nos empurrando para aquilo que Zygmunt Bauman chamou modernidade líquida. Que corresponderia a uma nova época em que as relações sociais e económicas, as instituições e os valores ter-se-ão tornado tão fugazes e tão maleáveis como os líquidos. A solidez dos laços das pessoas entre si e delas com as instituições tivesse ficado mais frágil. O individualismo e a lógica do consumo tivessem passado a prevalecer sobre tudo o resto. E o comportamento parecesse o rasto possível dum mundo que se sente incomodado quando pensa.

A psicologia que esta nova realidade parecia exigir, depois dos anos 80, fez com que a psicanálise soçobrasse a uma psicologia mais “cognitiva”, como se pensar sobre o pensamento, estabelecendo sínteses e retirando delas consequências para a mudança não fosse, também ela, um processo de conhecimento. E, por isso mesmo, cognitivo. Seja como for, a psicologia tornou-se menos compreensiva e muito mais descritiva. Mais “pragmática”. Mais centrada em programas preventivos cuja eficácia e a utilidade não se ousa discutir. Mais amiga da resolução dos sintomas e dos problemas de comportamento. Por mais que, com isso, se tivesse separado o aconselhamento da psicoterapia. E se tivesse passado a privilegiar o resultado ao processo. O destino valesse mais que o caminho. Ou as soluções da última página fossem preferíveis ao raciocínio e o método com que se chegue até elas.

Hoje, o mundo em que vivemos convive com um controle muito pouco democrático dos estados sobre a liberdade individual. Fala, amiúde, do terrorismo como se ele fosse o argumento que legitimasse a desconfiança sobre tudo o que nos é estranho. Aprofunda as desigualdades sociais num tempo de mais conhecimento e, supostamente, de melhor democracia. Convive com indiferença com o drama das migrações, como se os problemas da humanidade não fossem transversais a todos nós. E deixa que a guerra e a violência se tenham tornado, de novo, banais. Por mais que a indiferença pelo sofrimento do outro leve a que se ache qualquer conflito (mesmo beligerante) como um lugar longe demais.

Hoje, o mundo em que vivemos parece privilegiar a imagem que construímos àquilo que nós somos. Alimenta a ilusão que a tecnologia é o futuro da democracia, à margem do bem comum, do bom senso, das regras, do contraditório, do sufrágio e da educação. E faz-se de pessoas pré-ocupadas e mais dependentes do narcisismo e do para-ser. Do que está para além do ser; do parecer. Cada vez mais acantonadas no comportamento e maçadas com o pensamento.

Num mundo como este, a natureza humana transformou-se num tabu. Os casais tratam-se por amor enquanto se dão cheios de reticências. E as coisas só não são ou pretas ou brancas, ou uma coisa ou outra porque nele sobrevive a parentalidade. E apesar de todos os tutoriais sobre os comportamentos que devemos ter, somos, como pais, a todo o momento, desafiados para pensar. E vamo-nos, ainda, rebelando nas relações que temos com o trabalho, porque será aí que a hegemonia do comportamento sobre o pensamento mais nos convida, sobretudo, a obedecer. E isso, de forma mais evidente, nos arranha e magoa.

Mas apesar desta hegemonia e desta unicidade em torno do comportamento, que faz com que os governos confundam manipulação com comunicação ou o mundo pareça medir-se mais pelos likes em relação a comportamentos que pela imaginação (que é a linguagem do cérebro), pelo pensamento (que organiza e estabiliza o cérebro) ou pela palavra (que liga cérebro, pensamento e comportamento), “não há machado que corte a raiz ao pensamento”. E, então, seguramente, a psicologia e os psicólogos despertarão para a responsabilidade de serem subversivos, unicamente por recordarem que, todavia, as pessoas pensam. E, qual Galileu, que elas não se resumem a comportamentos que orbitam em torno da tecnologia, mas que a tecnologia é só uma (e nem sequer a mais importante) das inúmeras órbitas que, sempre elas pensam, desenham em torno daquilo que desejam. Enquanto rasgam trilhos e caminhos. Transformam e crescem. E, de mão dada com elas, o mundo pula. E avança!