Deste texto não faz parte qualquer tipo de intenção discriminatória, seja ela étnica, social, geracional, ideológica, de género, ou outras. A pequena tentativa satírica dirige-se ao mais comum dos mortais entre nós, enquadrado no geral panorama circunstancial.

Já é dia, e ela acorda. Faz um esforço enorme para largar o abraço quente da cama. A manhã ainda se deve vestir de noite e custa levantar, mas o estridente som do alarme no telemóvel incita-a a agir rapidamente, a bem dos ainda saudáveis tímpanos e com carinho ao hipotálamo trintão. A hora põe-se a jeito para evitar as filas de trânsito a caminho do trabalho e é preciso aproveitá-la. Hoje teve que cumprir esta rotina mais cedo, porque trouxera o carro de serviço na véspera, e teve que o estacionar mais longe de casa, uma vez que no parque residencial do prédio a entrada é interdita a veículos a gás (rejeição nº 1).

Está atrasada, sabe, e chega aos 130km/h, mas não dura muito: a portagem da ponte que lhe aparece à frente impõe o abrandamento súbito, as filas de quilómetros felicitam com boas-vindas, como que em grupo de confraternização num murmúrio sossegado. Ela vê-se obrigada a parar na cauda de uma longa centopeia de carros e observa a chispa dos que passam pelo seu ombro, através de um vidro meio sujo, contíguos na faixa da via verde; falta-lhe o dístico identificador (rejeição nº 2).

Quando chega ao escritório leva já 45 minutos de delonga ao som do programa que faz rir no autorádio. No pátio social de entrada, encontra os colegas de sempre, inusitadamente excitados com um grupo de promotores que lá se encontrava. O cartaz do anúncio que traziam reluzia de ofertas pintadas a sol e mar e que lhe podiam cair no bolso caso instalasse uma nova aplicação de viagens no smartphone. Chegou tarde, pensou, mas tem prémio, sorriu! Cinco minutos mais nessa pequena fila, bateu o pé, mas eis que chega à frente do promotor, que está enfiado numa espécie de smoking rasca, e que lhe diz: “Lamentamos, mas a app só é compatível com iphone…” (rejeição nº 3).

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Curiosamente, o chefe não estava chateado com a falta de pontualidade, parece dia de festa na empresa. Recorda-se pois que a cada última sexta-feira do mês, existe um evento- surpresa dedicado ao incentivo do bem-estar dos funcionários, work-life balance importado. Desta vez tratava-se da oportunidade para uma experiência gratuita, numa tal máquina que devia ser banhada a ouro ou caída de Marte, tal era a promessa de resultados flagrantes, sem considerar que tal fenómeno custasse 3 ou 4 meses de ordenado. Com muita pena ficou a saber que para ser elegível teria que ter menos 2 kgs… (rejeição nº 4).

Está farta, farta! Decide-se e, bola para a frente, vai avançar com aquela entrevista para um novo emprego, que entretanto deixara pendente fazia meses. Passam semanas, corre tudo espetacularmente bem, mas tem sido desgastante, fez já 4 entrevistas, preparou-se até, sem dormir tranquila, e sempre a subir na hierarquia de interlocutores, falta o CEO. Neste processo, de tal intensidade, criou até uma relação de quase familiaridade com a equipa de recrutadores em outsourcing: acordaram o melhor seguro, alinharam condições, escolheu-se o novo modelo do telemóvel de serviço, e era melhor começar já a fazer backup do equipamento obsoleto. Nisto, liga-lhe novamente a gestora de carreira e que infelizmente lhe diz que a empresa afinal decidiu mudar a estratégia, e a contratação já não vai ter efeito… No entanto – uma simpática, a senhora – ficam com o contacto caso abra nova vaga (rejeição nº 5).

“Mudemos de vida, vou comprar um carro” – contra-ataca a frustração que se lhe incrusta pelas várias vezes em que fica pendurada ou a quilómetros do seu destino, resvalando dos saltos altos nos passeios de Lisboa, devido às limitações e condições de parqueamento da tal viatura a GPL. Assalta sites e stands, ela é exigente ou sabe exatamente o que quer. Encontra e escolhe um coupé xpto com teto de abrir, preto, de estofos em pele, e grita por dentro: “é este!”. O orçamento está um pouco acima do previsto, naturalmente, mas hoje em dia as credoras fazem milagres. Já com o vendedor do stand ao seu lado, ela faz simulação atrás de simulação e, por mais que estique, a corda fica ali resvés, mas possível. Os papéis estão assinados, a chave em cima da mesa, e cheira a plástico novo ali no cubículo do senhor barrigudo. Talvez este seu pensamento silencioso e cármico a tenha traído, eis que a barriga flutuante vem na sua direção, o vendedor termina um telefonema, com uma cara desanimada como quem faz falta sobre o Ronaldo e ele falha o penalti. Parece que as responsabilidades do crédito habitação, somadas às do crédito pessoal que fez para as remodelações na casa-de-banho do ano passado, não permitem que o coupé lhe caiba na garagem (rejeição nº 6).

Desanimada, está por tudo, esta pessoa vai dar um passeio. Olha o rio dali, ao pé da torre em Belém… balanceia-se ao som de um violinista de rua, caminha paralelamente ao horizonte da Trafaria, deixa que a mente se vá submergindo… “Baza daqui!!!”, é subitamente insultada por ciclistas com acne, que lhe rasam o dorso. Ela repara então que o chão é colorido e tem o ícone das duas rodas (rejeição nº 7).

Já é de noite, está cansada, peregrinou até ao centro da cidade. Passa por uma espécie de tasca com boa música e ambiente, mas vê muita miudagem à porta, pelo que decide continuar no seu passo (auto-rejeição nº 8). Mais à frente, o Bizarre Love Triangle sedu-la, mas a festa é assumidamente só para casais, até tem letreiro com bola vermelha (rejeição nº 9). Suspira e caminha mais um pouco. Derreada, finalmente escolhe uma porta conhecida, entra e acaba por se sentar ao balcão deste bar todo vestido de verde escuro, lembra uma azeitona, estica-se primeiro, e curva-se depois, num banco de pé alto, castanho, pouco confortável. Está à média-luz, o que lhe permite descansar os olhos entristecidos; fecha-os e ouve muito barulho, é música sem batida que não reconhece.

O momento pedia um largo, cheio, farto e exuberante copo de vinho tinto, mas dos bons, daqueles mesmo, mesmo bons: “Desculpe, senhora, aqui não servimos vinhos, só cocktails, o que vai ser?” (rejeição nº 10). Ela quase jurava que costumava beber vinho ali.. “Sirva-lhe um Dalmore envelhecido, por favor, nos copos maiores, e ponha na minha conta” – o coração dela parou! Parou e suspendeu-se, e paralizou, e estancou. Sim, aquele era o bar onde conhecera o seu grande amor, onde passaram os melhores dos momentos, daqueles que só vêm uma vez na vida, resplandescentes, virgens e com arco-íris, e só mesmo ele saberia pedir um whisky com tanta recordação. Apesar do ruído que ali se mantinha, zumbido batente ensurdecedor, a voz e o canto do amado irrompiam e eram inconfundíveis, unos, e ímpares; e os seus efeitos eram igualmente categóricos, singulares, assim mais para o nefastos (toma consciência disso e assusta-se num saltito em cima do banco torto). Voltam-se um para o outro e confirmam aquela ligação encriptada. Rapidamente se passaram 10 minutos de conversa, os olhos de ambos brilhavam como se diamantes nascessem nas ostras. “Ah, dia duro”, ela pensou, mas, bolas, se há recompensa! E assim chegaram aos 30 minutos, aos 40 e aos 60: conversavam como se fosse desde ontem, naquele registo tão íntimo, que defraudava o facto de já não se verem há anos. Ela, atenta aos lábios dele enquanto os mexia em palavras que não se escutavam, ia-se indagando na sua psique voadora sobre as questões mais cruciais e práticas para aquela altura como, por exemplo, se deixara a casa suficientemente em ordem para o poder receber agora, e se estaria tudo mais ou menos arrumado e, mais importante ainda, se deixara tudo limpo? Sem respostas serviu-lhe mais um copo, é a fórmula ideal para se entaipar a visão, e aqueles berbicachos deixariam de se pôr. Juntos, agora de mãos dadas, dirigem-se ao átrio do bar, está frio lá fora, ela diz que chama um uber… ele espera. “Bolas, o cartão não está a funcionar!” (rejeição nº 11), ele resolve. Ela beija- o, as pernas falham, ele segura-a firmemente, tudo sentem, palpitam-se esmagados corpo a corpo: “Vamos!, o motorista chegou, a matrícula acaba em XK 38…”. Ele afasta-se: “Não, não, vai tu, a minha mulher já me mandou mensagem, e a dizer que o Júnior está a chamar por mim” (rejeição nº 12).

Ninguém está livre.