Nos últimos dias, não têm faltado comentadores, inclusive militares, a asseverar a vitória rápida e esmagadora da Rússia sobre a Ucrânia. Trata-se de uma ilação amparada na mera comparação aritmética entre os dispositivos militares dos dois países, mas uma análise com recurso à teoria realista das Relações Internacionais permite compreender por que a Ucrânia está a resistir com algum sucesso à invasão russa. É que, afinal, a guerra não é um exercício de matemática.
Segundo John Mearsheimer, o realismo assenta nas seguintes assunções: i) o sistema internacional é anárquico; ii) todos os Estados têm alguma capacidade militar ofensiva; iii) os Estados não têm certezas sobre as intenções dos outros; iv) o principal objectivo de qualquer Estado é a sobrevivência; e v) os Estados são actores racionais, ou seja, pensam de forma estratégica para maximizar as suas possibilidades de sobrevivência. Este conjunto de características explica a contínua procura, pelas grandes potências, de oportunidades para ganhar poder à custa de outros Estados. Porém, à luz do neo-realismo defensivo, é imprudente procurar maximizar o poder, porque o sistema acabará por punir os Estados que envidem esforços nesse sentido. Já os neo-realistas ofensivos consideram que faz sentido alcançar o máximo poder possível e, se as circunstâncias o permitirem, tentar atingir a hegemonia.
Para os realistas defensivos, como Kenneth Waltz, a tentativa de conquista de hegemonia (regional ou global) é imprudente, podendo levar a uma expansão exagerada (overexpansion). Esta, ancorada num aumento de poder, influencia a balança de poder, levando a uma reacção por parte de outros Estados – o balancing para repor o equilíbrio. Ademais, em situações de conflito militar, existe um equilíbrio entre a defesa e o ataque, habitualmente muito favorável à defesa. Por tudo isto, assumir uma postura ofensiva precipita guerras em que o atacante sairá, provavelmente, derrotado, mas mesmo quando a conquista é possível, tende a ter mais custos que ganhos.
Os neo-realistas ofensivos, naturalmente, discordam da abordagem defensiva, considerando que nem sempre o balancing é eficiente para um Estado ameaçado, uma vez que outros Estados podem preferir o buck-passing a uma aliança defensiva, que o equilíbrio entre defesa e ataque não favorece sempre a primeira, e que por vezes a conquista compensa e pode nem ser necessário ocupar integralmente o opositor, bastando anexar partes do seu território, dividi-lo ou desarmá-lo.
Importa ainda salientar que os realistas defensivos e ofensivos estão de acordo no que concerne às armas nucleares: só são úteis para efeitos ofensivos se apenas um dos lados num conflito as tiver. Se integrarem o arsenal de ambos, nenhum tem vantagem em atacar primeiro. Por isto, é improvável a ocorrência de conflitos convencionais entre potências nucleares, devido ao perigo de escalada para uma guerra nuclear.
Ora, existem três razões fundamentais para o equilíbrio entre a defesa e o ataque ser favorável à primeira. Primeiro, quem defende conhece melhor o seu território. Segundo, o espírito de combate é animado pelo patriotismo e nacionalismo característicos de quem está a defender o seu próprio país – algo que contribuiu de forma determinante para a derrota dos EUA no Vietname e a da União Soviética no Afeganistão e de onde decorre que as grandes potências não são invencíveis, podendo ser vergadas por pequenas e médias potências, frequentemente, com o apoio de outras. A terceira razão diz respeito aos problemas logísticos que um exército invasor enfrenta quanto mais penetra no território do adversário, com as linhas de abastecimento a tornarem-se longas e vulneráveis.
Estas condições têm sido activos estratégicos fulcrais para a Ucrânia. Os militares ucranianos conhecem melhor o terreno, e se a invasão passar a uma fase de guerrilha urbana o peso deste activo tenderá a aumentar em favor da resistência ucraniana. A infantaria russa parece ter avançado mais rapidamente que as respectivas linhas de abastecimento, contribuindo para algumas vitórias ucranianas e justificando parcialmente os relatos de rendição e deserção de soldados russos. Acresce que a demonstração de coragem pelo Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, cuja liderança tem sido exemplar, é crucial para manter os soldados ucranianos e os próprios civis determinados na sua resistência aos invasores.
Não quer isto dizer que a Rússia não venha a conquistar Kiev e a Ucrânia. Mas se tal acontecer, os custos serão elevadíssimos. O tempo corre contra o Kremlin, que se vê cada vez mais isolado no panorama internacional. As sanções económicas dirigidas à Rússia, pese embora o tempo que demoram a fazerem-se sentir, contribuirão para asfixiar a sua economia, o que aumentará o descontentamento interno e, no limite, poderá levar à queda de Vladimir Putin. Aliás, um resultado frequente da derrota em conflagrações militares, ou, pelo menos, do sofrimento de um povo devido ao esforço de guerra, é precisamente a queda de líderes e regimes políticos. Putin, mesmo com uma visão distorcida da história, certamente não ignora o sucedido a Nicolau II e ao Império Russo, bem como aos Impérios Alemão, Austro-Húngaro e Otomano com o término da I Guerra Mundial. Zelensky, por seu lado, vai emergindo desta guerra com uma aura de líder carismático capaz de resistir a uma invasão de um regime autoritário e recolhendo cada vez mais apoios diplomáticos e assistência militar. Ou seja, o balancing anti-hegemónico vai funcionando.
Importa ainda salientar que, desde o início do conflito, subsiste aparentemente um motivo para as potências ocidentais não intervirem directamente com forças militares convencionais no teatro de guerra: a posse de armas nucleares por parte da Rússia. É o receio de uma escalada conducente a uma guerra nuclear que está nas mentes dos decisores políticos, bem como nas de muitos comentadores, especialmente após a ameaça, por Putin, de consequências nunca vistas na nossa história. Ora, a ameaça implícita de utilização de armas nucleares por Moscovo não é credível. Primeiro, porque, como mencionado acima, os Estados são actores racionais e estratégicos que têm como objectivo primário a sua própria sobrevivência e as armas nucleares só são úteis para efeitos ofensivos se apenas um dos lados num conflito as detiver. Segundo, porque retém validade a brilhante análise de George Kennan no seu Long Telegram (1946) e em The Sources of Soviet Conduct (1947), que esteve na génese da doutrina da contenção do expansionismo soviético. Conforme salientou o eminente sovietólogo, o Kremlin é “Impermeável à lógica da razão e altamente sensível à lógica da força. Por esta razão, pode-se retirar facilmente – e geralmente fá-lo quando encontra uma forte resistência em qualquer ponto.” Assim foi aquando das crises dos Estreitos Turcos e do Irão, logo em 1946, mas também no restante período da Guerra Fria, quando os EUA já não detinham o monopólio das armas nucleares.
Isto significa que o cálculo da utilização de armas nucleares não é tão linear e automático como muitos comentadores e políticos pensam, talvez influenciados pelo clássico de Stanley Kubrick Dr. Strangelove. Trata-se de uma tecnologia eminentemente defensiva e quando dois lados em confronto a detêm, ao invés de poder contribuir para uma escalada, pode precisamente levar ao término das hostilidades. Quando a sobrevivência de um dos lados é colocada em causa pelo recurso a esta tecnologia, devido à garantia de retaliação, deixa de fazer sentido utilizá-la – era nisto que assentava a doutrina da Mutual Assured Destruction (MAD).
Putin está ciente disto e acredita que os Estados ocidentais não intervirão militarmente na Ucrânia devido ao receio de uma escalada para um confronto nuclear. Talvez esteja na altura de o Ocidente ser imprevisível e surpreender Putin com o que para este é improvável, revelando o seu bluff. Seria um golpe de mestre que rapidamente o obrigaria a suspender as hostilidades e a sentar-se à mesa das negociações antes que o seu regime colapse.