para a Sofia,
menina que sorri na escuridão
No território que é hoje a Tunísia, no início do século IV, perto de Souk Ahras, em Thubursicum Numidarum, o gramático Nonius Marcellus inventariou todas as palavras latinas em doze livros. Deu a esse trabalho um título gongórico – Compendiosa Doctrina per Litteras – e dedicou-o ao filho. Numa coluna do volumen V, Nonius registou a palavra terrificatio. Nonius Marcellus é o único autor a assinalar esta palavra. Não aparece atestada em nenhum dos textos antigos que chegaram até nós e, como fumo, dissipou o seu rasto no mundo que se lhe seguiu. Há nomes assim – hybris vocálicas, circunlocuções de breve existência, espantalhos da solidão – que, de timão seguro, gradam os torrões em torno do inominável. Moby Dick, por exemplo.
Esta obra foi publicada em 1851, quando Melville tinha trinta e dois anos. Os críticos consideraram-na operática e extravagante, e o seu carácter rendilhado e natureza fragmentária provocaram a indiferença nos leitores. Marcou o princípio do fim do respeito que Herman Melville tinha alcançado com os seus primeiros romances, sobretudo os que tinham por cenário os Mares do Sul, e seria necessário esperar até 1919, data do centenário do seu nascimento, para que tanto críticos como leitores se voltassem a lembrar dele. Mas foi sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial que Herman Melville alcançou o estatuto de clássico indiscutível de que hoje goza. Foi a partir de então que os estudos sobre ele começaram a multiplicar-se, e pelo menos três das suas obras – Moby Dick, Bartleby e Billy Budd – alcançaram a dignidade indiscutível de grandes obras da literatura universal. Não foi casual que tivesse acontecido precisamente naquele momento, aqueles anos sombrios e negros que, após a descoberta de campos de extermínio e a iminência absurda de um apocalipse atómico, voltaram a colocar a consciência do homem ocidental diante daquele sombrio e irónico núcleo demoníaco do universo que tinha sido o tema central da obra de Melville.
Herman Melville sabia muito sobre aquele universo golpeado pelo terror e pela indiferença sombria do seu criador. O seu romance Moby Dick é dedicado a um seu amigo, o escritor Nathaniel Hawthorne, sobre o qual escreveu ser o homem que melhor conhecia «as supurações e a decrepitude da malevolência inescrutável do universo». Melville era, sem dúvida, um grande pessimista e, diante daqueles que afirmavam a bondade do homem, falou sempre da desesperada ambiguidade entre o bem e o mal. Na realidade, aquela atmosfera de gravidade, de orgulhos humanos humilhados diante de Deus e de terrores naturais que são a sua directa manifestação, remetia para o mundo do Antigo Testamento. A história da Baleia Branca não é muito diferente, por exemplo, da história de Jonas ou da do pobre Job.
Moby Dick representa o demoníaco do universo, uma consciência por trás das forças destrutivas; aquele mundo invisível de que o visível não é mais do que um pálido reflexo. O Capitão Ahab delira, jejua, vigia, dirige imprecações ao céu. Tal como os heróis de Homero, enfrenta o mistério do mundo e, como os reis sanguinários de Shakespeare – o Rei Lear, Hamlet e Macbeth – vive para revelar o enigma da morte. O que move o capitão Ahab, bem como os grandes heróis trágicos, é a suprema hybris – a ousadia de senhorear a Σοφία (Sofia – sabedoria), o insolente desejo de saber. É por isso que quando o seu lugar-tenente, Starbuck, o repreende, explicando-lhe «que vingar-se de uma besta que age apenas por instinto cego lhe parece um acto blasfemo», Ahab responde que «todas as coisas visíveis não são mais do que o cartão oco de uma máscara, de maneira que, quem desejar pôr a nu a razão, terá de forçosamente livrar-se dessa máscara».
Mas estaríamos bem enganados se pensássemos que Moby Dick é uma obra que possui apenas aquela sombria dimensão simbólica. Na realidade, Moby Dick é muitas coisas. Uma espécie de tratado oceânico, zoológico e baleeiro, um poema de ação e perigo, um romance de iniciação. No início, um rapaz, Ismael, abandona o seu mundo conhecido para entrar no fantástico – um mundo povoado por arpoadores pagãos, ondas primordiais, membros humanos esculpidos em ossos de baleia, monstros marinhos de um qualquer universo metafísico e também por aquela incerteza que apenas a proximidade da morte é capaz de proporcionar.
O conflito não é apenas entre Ahab e a baleia branca, mas entre a razão e a loucura: «Ah, Ahab, ainda não é tarde, ao terceiro dia, para desistir. Escuta, Moby Dick não te procura. És tu, és tu quem anda loucamente no seu encalço!» Starbuck tenta dizer ao seu capitão que enfrentar um animal que age cegamente é uma loucura. A sua função é caçar baleias e providenciar óleo para as lâmpadas dos homens, e não hastear a bandeira da vingança; e fazê-lo é um crime de usurpação. Mas é tarde demais para Ahab, um marinheiro da Nova Inglaterra, um monomaníaco sem memória da sua vida em terra, o ouvir. A baleia leva os seus arpões, «ficaram nela, presos e retorcidos», e ofereceu-lhe, com toda sua convicção, uma das suas pernas. Pode não saber exatamente o que significa Moby Dick, mas a sua vida depende dessa captura. Quer vingança, mas, acima de tudo, quer saber. Enfrentar a morte tentando dirimir o seu sentido.
Talvez por isso um dos momentos mais significativos do romance seja o encontro em alto mar entre o Pequod e o Raquel, um outro navio baleeiro. O capitão do Raquel procura no mar um dos seus filhos perdidos e pede ajuda ao capitão Ahab. Mas este anseia apenas por notícias da baleia branca e, quando finalmente as obtém, recusa-se a ajudá-lo na sua busca e reinicia imediatamente a perseguição. Compreendemos então a advertência do seu lugar-tenente: «Ahab deve temer Ahab». E, de facto, o verdadeiro inimigo do Capitão Ahab não é Moby Dick, mas a sua própria desmesurada sede de vingança.
Não há nada a descobrir por trás da Baleia Branca, diz-nos esta história atroz: o seu significado aterrador é precisamente o de representar um vazio, um nada, uma força bruta, ou talvez algo de incognoscível, o que vai dar ao mesmo. A aniquilação face ao mistério sagrado do mal é a única forma possível de comunhão, como escreveu Cesare Pavese. E, no entanto, o último parágrafo do livro deixa entrever uma pequena esperança. Ismael consegue sobreviver ao naufrágio, usando como jangada o esquife do seu amigo arpoador, como se, à semelhança de Jonas, fosse possível regressar da morte.
Um navio, também ele de nome bíblico – o da piedosa e meiga Raquel – vem em socorro de um rapaz, demonstrando que existe um outro mistério que talvez supere o da baleia branca, o daquela aragem ténue e luminosa que sopra nos momentos mais inesperados – seja no mar alto como no topo das mais improváveis colinas – e que, torcendo os dedos e olhando fixamente os nossos sapatos, costumamos chamar amor. O capitão Ahab não deveria ter esquecido, como lhe pedira Starbuck, que a sua missão, como capitão de um navio baleeiro, não era perseguir quimeras, mas providenciar óleo para as lâmpadas dos homens. A doce Sofia – aquele fogo antigo, livre e frágil – habita, livre e frágil, o coração humano, e o verdadeiro mistério é a quantidade de lâmpadas que permanecem sempre e ainda gloriosamente acesas na escuridão do mundo.