A Comissão Europeia – o Governo da União – está praticamente formada. Os comissários estão escolhidos. Falta apenas a aprovação da Comissão como um todo pelo Parlamento Europeu, algo que, à partida, está assegurado, e a nomeação formal pelo Conselho Europeu. Chamei-lhe “Governo da União”, mas talvez devesse chamar-lhe “Governo da Europa”. Vou tentar explicar porquê.
A CEE nasceu em 1957 com o objetivo de criar um mercado livre, altamente concorrencial, sem barreiras alfandegárias entre os Estados aderentes, para permitir a livre circulação de trabalhadores, bens, serviços e capital. A concorrência favorecia a descida de preços e a criação de produtos e serviços de alta qualidade em benefício dos consumidores. A Comissão intervinha sempre que monopólios, cartéis (acordos de preços), fusões, aquisições, subsídios de Estado, benefícios fiscais ou outras práticas pudessem pôr em causa a concorrência e, consequentemente, o bem-estar do consumidor individual. No que respeita aos governos nacionais, a Comissão separava a política do mercado. Por outras palavras, impedia os Estados de fazerem política intervindo na economia.
A concessão de subsídios aos agricultores ou os fundos estruturais para as zonas mais desfavorecidas, que existem desde o início da comunidade, eram encarados como uma exceção, uma moeda de troca para que os Estados abdicassem de controlar o mercado.
O paradigma mudou. Hoje a Comissão prossegue abertamente objetivos políticos. Autoriza cada vez mais subsídios estatais (em 2021 foram o triplo do que eram antes da pandemia e desde 2022 atingiram mais de 750 mil milhões de euros) e é condescendente com práticas protecionistas.
As ações da Comissão contra os Estados-membros por violação da lei da concorrência diminuíram acentuadamente, como se pode verificar pelos dados oficiais. Um cartel, que seria um anátema há uns anos, é agora tolerado desde que as empresas envolvidas prossigam, por exemplo, práticas de sustentabilidade ambiental.
A Comissão é o governo de uma União que se está a transformar num bloco de hard power. Inicialmente, a União era um soft power, um modelo para o Mundo, que promovia o livre comércio e a interdependência económica entre países. Já não é assim. Agora a União quer estar em condições de competir com a China e os EUA. Tem objetivos geoestratégicos, como se vê na sua reação à guerra entre a Rússia e Ucrânia. Definiu uma fronteira comum e criou um exército de facto (ainda que não formal) para guardá-la, comandado por uma agência europeia, a Frontex, cujo orçamento deverá decuplicar até 2025.
A União é agora uma proto-federação, um bloco que se aproxima do modelo federal americano, apesar de não ter sido esse o acordo que realizou com os Estados-membros. Apercebeu-se de que a paz requer poder. A Europa já não tem o luxo de manter as mãos limpas enquanto deixa o trabalho sujo para os outros. Tem de rearmar-se. Tem de proteger as fronteiras. Tem de reduzir a dependência estratégica de países com os quais não partilha os mesmos valores.
A União está a colocar a geoestratégia acima dos mercados. Está a promover acordos entre governos e empresas (no âmbito do clima, da energia, da economia, da indústria…), minando a separação entre Estado e economia que esteve na génese da comunidade.
De acordo com os Tratados. a União Europeia é uma organização supranacional com poderes limitados (que são exclusivamente os que lhe foram atribuídos pelos Estados-membros), em que a soberania se mantém nos Estados e as decisões políticas são tomadas o mais possível perto dos cidadãos. A transformação da Comissão num Governo da Europa talvez seja inevitável – um resultado de um choque com a realidade – mas levanta um sério problema de legitimidade: não foi este o poder que os Estados lhe atribuíram.
A intervenção estatal é contagiosa.