Ao contrário do que, à direita, é costume proclamar-se não sem a inconfundível vaidade que sempre acompanha a modéstia de contrafacção, a distinção fundamental entre a esquerda e a direita, presentes ou pretéritas, não reside no facto de a esquerda se situar num plano de superioridade moral que – de acordo com a fórmula canónica de que os fins mais dignos justificam os meios mais sinistros – consente e legitima os abusos mais flagrantes, vício constitutivo a que a direita, nos alienados solilóquios que, diante do espelho, devota à açucarada descrição de si mesma, está ou estaria orgulhosamente imune.
É inegável que a esquerda padece da superioridade moral acima diagnosticada. Do carinho por purgas russas, valas ucranianas e fomes chinesas à sabujice devotada a tiranos venezuelanos, assassinos bascos, foragidos catalães e descondenados brasileiros; dos amanhãs cujas canções foram cantadas para uma terra sem amos mas escutadas por reféns na Lubianka e escravos no Gulag aos democratas sazonais que chamam “cerca sanitária” à sua repulsa pelo pluralismo democrático e “chão democrático comum” à degradação das instituições democráticas em nome da protecção das instituições democráticas, a esquerda nunca escondeu, ou sequer lamentou, totalmente que sempre viu o complexo de reservas e ressalvas, minúcias e crivos, partições e travancas, freios e contrapesos próprios das democracias liberais como, na verdade, um exército hostil a abater: um derradeiro estorvo institucional e uma longa trégua histórica, ambos a serem pacientemente instrumentalizados e finalmente removidos assim que a oportunidade, institucional e histórica, se proporcione.
Confessando isto mesmo, Trotsky, que nunca teve qualquer vergonha em justificar misérias presentes em nome de bonanças futuras e em inferir que renunciar ao terrorismo é renunciar à ditadura revolucionária e, portanto, ao próprio socialismo, advogou, por exemplo em Terrorismo e Comunismo (1920), a entrada instrumental dos comunistas nos parlamentos “burgueses”, de modo, justamente, a instrumentalizá-los e sabotá-los até ao esvaziamento: “O nosso partido nunca se recusou a conduzir o proletariado à ditadura passando pela democracia; ele deu-se perfeitamente conta das vantagens abertas à propaganda e à acção política por uma tal transição “legalizada” para a nova ordem”. E não adianta protestar, a pretexto de cautelas contra alegações abusivamente redutoras, que a esquerda não é apenas Trotsky e que os anos 20 do século XX não são os anos 20 do século XXI. Todo o esquerdismo é uma forma, mais ou menos confessada, de trotskysmo: a única questão é determinar, em cada momento histórico, quão próxima se encontra a picareta e em qual das duas pontas da picareta se encontra Trostky.
A picareta enterrada na cabeça de um traidor não é, pois, uma adulteração, um desvio, um acidente da superioridade moral da esquerda: é a expressão lógica da sua essência mesma. Tudo isso é, pois, verdade. O que não é verdade é que a direita esteja, como julga estar, imune aos feitiços das sirenas da superioridade moral. Os típicos refrões “nós não somos como eles”, “nós não descemos ao nível deles”, “o que nos distingue deles é que nós não estamos dispostos a tudo pelo poder”, “para nós, ao contrário deles, não vale tudo em política”, parecem, de facto, entoar o mantra da renúncia, de princípio, a toda e qualquer forma de superioridade moral por parte da direita (e quanto mais moderada se afirmar, mais renunciante, e mântrica, a afirmação). E é aqui, justamente, que reside o equívoco.
A direita moderada não é, como pretende, imune ou avessa à superioridade moral, ela tem é uma concepção distinta, e mais cínica, da superioridade moral. A própria moderação como adjectivo acoplado à direita (a “direita moderada”), na medida em que pretende classificar a qualidade específica dessa direita e, assim, modificar-lhe o sentido por via da sua elevação à estatura teológica de virtude cardinal, é, na verdade, a mais categórica afirmação de superioridade moral: é a superioridade moral que se afirma na própria negação de superioridade: é a superioridade que – e qua – se nega como superior. A negação moralista de superioridade moral é talvez a forma mais velhaca, e consumada, de afirmação de superioridade moral: afirmar que toda a superioridade moral é negativa é ainda um modo de afirmar uma determinada forma de superioridade moral: nós somos moralmente superiores justamente porque não nos consideramos, como os outros, moralmente superiores. Nós não somos como os que se afirmam moralmente superiores – e reside aí mesmo toda a nossa superioridade moral. Nós, que renunciamos à superioridade moral, somos moralmente superiores àqueles que se afirmam moralmente superiores. Somos, enfim, moralmente superiores a toda a superioridade moral.
Não se trata, pois, de uma distinção entre uma esquerda que afirmaria, a galope das suas pulsões utópicas, a sua superioridade moral e uma direita que, precavida pelo seu pessimismo antropológico, se afirmaria pela sua negação. Trata-se, isso sim, de duas concepções de superioridade moral que, embora distintas, favorecem a deterioração das regras democráticas e a compressão do pluralismo que essas regras visam promover e salvaguardar. Ambos os tipos de superioridade moral resultam, pois, na degradação das regras democráticas: a de esquerda, por manipulação; a de direita, por inaplicabilidade; a de esquerda, manipulando as regras democráticas; a de direita, tornando-as inoperantes. A superioridade moral da esquerda, por invasão, torna as regras democráticas inválidas, a superioridade moral da direita, por evasão, torna-as vazias. Se a esquerda não tem regras, a direita tem regras inexistentes. A superioridade moral de esquerda convive bem com demónios, a superioridade moral de direita só convive com anjos. As democracias modernas, feitas por e para humanos, oscilam cada vez mais nesta falha tectónica que se desloca entre a democracia sem regras democráticas da esquerda e as regras democráticas sem democracia da direita.
São, pois, duas concepções de superioridade moral em oposição, e não uma concepção de superioridade moral (de esquerda) à qual se oporia uma concepção isenta de superioridade moral (de direita). A superioridade moral de esquerda assenta numa concepção optimista segundo a qual a esquerda, apesar de toda a miséria imposta e de todo o sangue vertido, não tem passado nem antepassados: a esquerda é sempre e toda futuro e amanhã, concebida sem pecado. Todas as manhãs, lá nasce ela de novo, inteira e virgem, milagre auto e partenogenético, rasgando, ao soco e à patada, a sua própria bolsa amniótica. A superioridade moral de direita, inversamente, assenta numa concepção pessimista que atribui à direita apenas passado e ascendência: todo o futuro é, na hipótese benigna, impossível de concretizar ou, na hipótese maligna, de concretização monstruosa, pelo que, para seu próprio bem, a descendência deve limitar-se a ser a respeitadora e replicadora, genética e civilizacional, da ascendência; as gerações vivas e por vir, proscritas do direito de sonhar e criar, devem ser apenas os dóceis donatários dos sonhos e criações das gerações mortas.
A esquerda vê nos vivos apenas o refugo metálico do qual será extraído, malhando furiosamente a bigorna da História, o novo e final Adão. A direita vê nos vivos as criaturas perpetuamente gratas e penhoradas dos enterrados, dos cremados e dos embalsamados. A esquerda pertence assim aos adventos, aos partos, às auroras – numa palavra, à luz –, enquanto a direita pertence aos pretéritos, aos sepulcros, aos ocasos – ou seja, à sombra. Enquanto a esquerda lança asas e amplexos nos céus limpos e longínquos do olho oracular do porvir que tudo permite, a direita enterra raízes e vénias nos solos atolados e imemoriais da noite cega do tempo que tudo interdita. De um lado, o homem por parir. Do outro, o homem defunto. Entre a fecundação de um e a decomposição do outro, o homem vivo e vivente, esquecido pelas odes que celebram a vinda do primeiro e os requiems que evocam a partida do segundo.
Destas duas concepções de superioridade moral, uma luminosa que aponta para cima e para a frente, e outra sombria que aponta para baixo e para trás, decorrem também diferentes implicações no campo da disputa política. As interpretações dos resultados das recentes eleições gerais espanholas (23 de Julho de 2023), em que a esquerda vê na sua derrota uma vitória necessária enquanto a direita vê na sua vitória uma derrota merecida, fornecem a aplicação empírica desta distinção entre as duas superioridades morais e, em particular, a demonstração da concepção de superioridade moral típica da direita moderada (sobretudo, para o que aqui nos interessa, portuguesa) para quem a vitória-derrota da direita espanhola é tanto mais fácil de explicar quanto mais contraditória for a explicação: até às eleições, a direita moderada alertava para um eleitorado subitamente seduzido pela extrema-direita – e daí a grande fragilidade da democracia; após os resultados, a mesma direita moderada sempre soube que o eleitorado jamais se deixaria seduzir pela extrema-direita – e daí a grande lição democrática. A direita espanhola, perdendo a eleição que venceu, foi assim merecidamente penalizada por se ter aproximado demasiadamente da extrema-direita da qual não fez outra coisa senão afastar-se.
Logo que colocada diante da necessidade de escolher, no mundo real das aritméticas e dos compromissos, das barganhas e dos escambos (“There are no solutions; there are only trade-offs”, como insiste Thomas Sowell) que manifestam a essência mesma da antropologia pessimista e da política não utópica que, nas televisões e nos jornais, jura defender e representar, a direita moderada não teve dúvidas em proclamar a “nuestros hermanos”, não sem a devida e telegénica encenação de gravitas e gravatas, a sua firme preferência – em nome da moderação enquanto única forma de proteger a democracia das derivas extremistas que, asseguram, a ameaçam hoje mais que nunca – por uma frankensteiniana fraternidade de incompetentes, imprestáveis, fanáticos e, sem espanto, assassinos condenados que representam justamente a visão puritana e utópica que constitui a própria essência de tudo aquilo que, nas mesmas televisões e nos mesmos jornais, a direita moderada jura reprovar e combater.
No fundo, aquilo a que se convencionou chamar de direita moderada não é hoje outra coisa senão o ponto do espectro político onde escolhem posicionar-se os adeptos da escolha fácil. Da escolha que dispensa escolher. Da escolha que, impondo-se por si própria, se escolhe a si mesma. Da não escolha, portanto. Julga que a verdadeira escolha é uma só e é sempre clara e fácil como entre Hitler e Churchill. De Churchill, portanto, não aprendeu a decisiva lição da escolha difícil entre Hitler e Estaline, apenas o glamour do charuto icónico, do aforismo prodigioso e dos dedos em v. É com o Churchill póstumo, e não com o vivo, que ela se identifica. É no Churchill vitorioso, e não no combatente (sem o qual não haveria o vitorioso), que ela se reconhece. É no Churchill aristocrata, e não no democrata, que ela se inspira. E é por isso que os seus princípios, enquanto sistema de mapeamento e orientação no atribulado mundo político, lhe servem apenas para situações em que os desafios a enfrentar e a superar são breves, modestos e, como tal, não comprometem o seu compromisso de não ter de escolher. Dir-se-ia que os princípios da direita moderada são óptimos instrumentos de navegação para mares calmos, onde eles são desnecessários, e péssimos para mares revoltos, onde eles são indispensáveis. A direita moderada é um farol inútil: só se avista quando o barco está em terra e a sua luz brilha e gira apenas de dia. A direita moderada é ideal para passeios de barco a remos em soalheiros lagos de Domingo. Não é com tais navegadores que se vencem Bojadores e Adamastores.
No final de contas, a direita moderada não é direita moderada. Dizer direita moderada é dizer direita moderada – pela esquerda. Na verdade, é direita condicionada. Como se viu em Espanha e como se vê em Portugal (e em Portugal sobre Espanha), o que a esquerda tenta realmente condicionar não é a “extrema-direita”, é a direita moderada. A “extrema-direita” é apenas o espantalho, a miragem, o engodo de que a esquerda se serve para condicionar a direita moderada. A própria direita moderada – ou a moderação enquanto virtude de direita – é uma venenosa invenção de esquerda: a moderação é a armadilha de coelho nos laços e paus e guizos da qual a direita se enrodilha e se encarquilha – ou seja, se condiciona – a si mesma. Em termos do jogo de soma-zero que é a política, trata-se de um ardil genialmente engenhoso: que mais pode um Ulisses “dos mil estratagemas” pedir aos deuses homéricos do que todo um campo ideológico adversário dedicado a tricotar alegremente a sua própria armadilha como se da mortalha de Laertes se tratasse, reclamando para si mesmo o espaço acanhado do oikos (o “lar”), de onde não sai, entrançada no seu infinito tece e destece, a paciente – portanto, moderada – Penélope, deixando assim a Ulisses, e seus mil estratagemas, o espaço aberto da peleja, da façanha, da palavra – ou seja, da pólis?
Chegará talvez o dia em que, entretida e enredada no seu tricot inútil, a direita moderada perceberá finalmente que, na realidade, não há nenhuma cerca sanitária em volta da “extrema-direita”: a “extrema-direita” é a cerca sanitária. E que, dentro dela, quem se encontra devidamente vigiada, cercada e isolada, e sem o ter percebido ainda, é ela mesma, a direita moderada, fechada à chave pelo lado de dentro. Fanática de uma moderação que a mantém refém da esquerda (a velha da comunidade a quem compete a devida e pública fiscalização do sangue vaginal no lençol da virgindade democrática), a direita moderada chama princípios à sua própria rendição e temperança à sua própria captura, confundindo, na verdade, moderação com sequestro e dignidade com inutilidade. Fanática da moderação, meio para um fim que confunde com um fim em si mesmo, merece ser lembrada, de cada vez que se envaidece da sua humildade, da deliciosa observação de Golda Meir, que costumava recomendar aos vaidosos mascarados de humildes que a rodeavam: “Don’t be so humble – you’re not that great”.
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