Compreender um fenómeno – natural ou social – é sempre, em certa medida, desencantá-lo. Desenfeitiçá-lo. Despi-lo da cápsula mágica que o camufla e com que hipnotiza. Quando uma criança desmonta um brinquedo para compreender o mecanismo do seu funcionamento, está de certa forma, mesmo que inconscientemente, a desencantar o brinquedo: analisar é, de acordo com a etimologia grega, desmontar, decompor, desfazer, soltar, partir em pedaços (já Descartes, no Discurso do Método, impunha à análise a tarefa de dividir um problema em tantas partes quantas as possíveis e necessárias à sua resolução: “diviser chacune des difficultés que j’examinerais, en autant de parcelles qu’il se pourrait, et qu’il serait requis pour les mieux résoudre”). Quando tentamos perceber um truque de magia (como é que a mulher serrada ao meio não foi realmente serrada?; como é que o ilusionista que atravessou a parede não atravessou realmente a parede?), estamos no fundo a tentar “desmagicizar”, por via da decomposição analítica, o fenómeno encantado. Da decomposição do brinquedo pela criança à dissecação do sistema solar por Copérnico, vai uma diferença respeitável, certamente – mas de grau, não de natureza. Compreender é desencantar.

Este “desencantamento do mundo” – expressão com que Max Weber descrevia o processo de racionalização crescente das sociedades modernas e cujo termo alemão, Entzauberung, indica a remoção (ent-) da magia, do feitiço ou do bruxedo (Zauber); portanto, a acção de remoção de um encantamento – vem acompanhado, não por acaso, de uma diminuição do recurso colectivo à violência expiatória: onde buscamos causas, não buscamos culpados; e onde não buscamos culpados, não buscamos reparações; e onde não buscamos reparações, não buscamos penitências; e onde não buscamos penitências, não buscamos linchamentos. Compreender o mundo e renunciar à demonização são uma e a mesma coisa: compreender o mundo é, portanto – invocando um famoso título de Carl Sagan –, desinfestá-lo de demónios.

Tornamo-nos menos violentos sempre que somos capazes de renunciar ao recurso primitivo à superstição (por exemplo, danças da chuva ou sacrifícios humanos) e, ao invés, de atribuir uma explicação racional a fenómenos que, eventualmente, nos são prejudiciais ou, mesmo, ameaçadores da nossa sobrevivência colectiva (por exemplo, secas ou pestes), recusando assim ao expediente da busca de demónios qualquer valor explicativo do real (a principal prova do poder demoníaco é sempre justamente ser um poder oculto, que não se mostra, que se furta à prova, residindo aí precisamente, nessa ocultação da prova, a prova de si mesma: a falta de prova é a prova da prova). Desencantar o mundo é compreender que nem a peste que se abateu sobre Tebas foi causada pelo parricídio e pelo incesto de Édipo nem a Peste Negra do século XIV foi causada pelo envenenamento dos poços por parte dos judeus: compreender as causas reais das pestilências é ao mesmo tempo renunciar ao degredo de Édipo e à caça aos judeus. A ética também é, em última instância, uma forma de epistemologia.

Em grande medida, o aumento e a normalização da violência política (física e verbal) a que temos assistido nas sociedades modernas (lembremos, desde logo, o pesadelo hobbesiano que acossou as ruas americanas no ano eleitoral de 2020 e a complacência rousseauniana – “mostly peaceful protests” – que lhe foi genericamente dedicada) podem ser explicados a partir da observação de um mundo (re)infestando-se de demónios. O recrudescimento da violência expiatória e a expansão da mentalidade progressista não são processos sociais independentes: pelo contrário, estão ambos estreitamente vinculados ao regresso fulgurante do primitivismo. À medida que nos tornamos mais progressistas, tornamo-nos também, inevitavelmente, mais primitivos – e, portanto, mais violentamente intolerantes e mais tolerantes à violência. Abdicando dos procedimentos racionais em favor dos ritos sacrificiais, o progressismo não busca a explicação mas a expiação; não busca a inquirição mas a inquisição; não busca a luz mas a pira; não busca a Academia de Platão mas o Tophet de Moloch.

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Uma das formas mais claras de demonstrar a validade desta tese consiste em observar como o progressismo recorre sistematicamente a narrativas baseadas em maléficos poderes ocultos cuja ausência de evidência, evidentemente infalsificável, é a sua própria evidência: onde Descartes aconselhava partir, o progressista amalgama (a estatística, em mãos progressistas, é praticamente indiscernível da exegese de entranhas animais); e onde aconselhava o necessário e o possível, o progressista impõe o inefável e o infalível. Na verdade, onde há fenómenos sociais cujas causas são explicáveis racionalmente, o progressista, para quem os rigores do raciocínio lógico são infinitamente menos atraentes do que os ardores da pregação emocional, vê demónios actuando às ocultas, servos demoníacos de amos demoníacos: a “masculinidade tóxica”, como outrora o envenenamento dos poços; o “supremacismo branco”, como outrora a depravação homossexual; o “apocalipse climático antropogénico”, como outrora a fúria punitiva divina. Provas? Nenhuma. Tudo isto é “sistémico” e “estrutural”, vocábulos-abracadabra de uma gramática-grimório cuja função (performativa e não constativa, para usar uma célebre distinção de J.L. Austin) é, secularizando o ocultismo, furtar-se à austeridade do empirismo e, por via de uma teia infinita de interseccionalizações [sic], fazer convergir todas as opressões imagináveis (e, sobretudo, imaginárias) para o funil identitário de uma única pele demoníaca, uma única prole demoníaca, um único genital demoníaco: “masculinidade tóxica”, “supremacismo branco”, “racismo sistémico”, “heteropatriarcado”, “neofascismo”, etc., não são, bem entendido, nomes de problemas sociais: são nomes de demónios: nomeá-los é invocá-los, invocá-los é exorcizá-los, exorcizá-los é persegui-los.

O famoso adágio de Alexandria Ocasio-Cortez (“There’s a lot of people more concerned about being precisely, factually, and semantically correct than about being morally right.”) ou a famosa tese de Joacine Katar-Moreira (“Um negro pode discriminar e ser preconceituoso com um branco, mas não pode ser racista com ele, porque este último não tem estruturas (históricas, políticas, económicas e sociais) que o oprimam com base no seu fenótipo.”) constituem dois exercícios de delírio progressista cujo prestígio intelectual alcançado, e sempre crescente, é apenas compreensível à luz do actual regresso, na versão “woke”, do primitivismo (de resto, a tese de Joacine é uma aplicação exemplar do adágio de Alexandria). No mundo infestado de demónios em que habitam AOC e JKM (mas cujo contágio necromântico pode capturar cabeças aparentemente insuspeitas de simpatias ocultistas como Boris Johnson que, provavelmente não tendo lido a biografia sobre Churchill que provavelmente não escreveu, atribuiu a invasão da Ucrânia pela Rússia ao facto de Putin não ser uma mulher); no mundo infestado de demónios em que habitam – dizia eu –, a mulher foi realmente serrada ao meio e o homem atravessou realmente a parede. Não há, não pode haver, outra explicação. Demónios. Um mundo infestado de demónios.

Para que o delírio explícito se torne prova irrefutável, basta que o contágio delirante se primitivize, isto é, se comunique boca-a-boca (os mantras alucinatórios são quase sempre doenças oralmente transmissíveis): nas televisões, nas rádios, nas universidades, nos concertos, nos cinemas, gera-se um efeito de bola de neve a partir do qual cada um deduz a sua convicção na existência de demónios da convicção dos demais que, por sua vez, deduziram a sua exactamente da mesma forma encantatória, duplicatória e contaminatória. A crença (inabalável e maioritária) em demónios não exige outra evidência de si que não a concordância colectiva que ela própria cria e replica. Parecendo que não, uma seita de alienados a lançar à água uma mulher acusada de bruxaria para testar se ela flutua também pode ser considerada uma comunidade epistémica. Parecendo que não, um grupo de especialistas a falar na televisão sobre o nexo entre a crise climática e a violência de género, ou entre a crise climática e o “racismo ambiental”, também pode ser considerado uma seita de alienados. É a unanimidade da crença que cria a evidência e não o contrário. Perguntem à mulher afogada que afinal não era bruxa.

E é justamente esta concepção demonológica do real que está na base da histórica predisposição progressista – da Paris de 1793-94 à Minneapolis de 2020, passando pela São Petersburgo/Petrogrado de 1917 – para o recurso à violência. Afinal, como, senão recorrendo à violência, se combatem demónios? Como, senão recorrendo à guilhotina, à bala ou ao fogo? Acaso foi através da persuasão dialógica ou da troca epistolar que São Jorge da Capadócia venceu o dragão de Silene? Para trespassar um dragão não basta ter uma espada: é necessário, antes de tudo, inventar o dragão (não por acaso, um dos capítulos do livro de Sagan é intitulado “The Dragon in My Garage”). Não é, portanto, de admirar que o progressismo, vanguarda do retrocesso, seja sempre contemporâneo do regresso dos autos-da-fé, ainda que as suas modalidades modernas se expressem em engenhos também eles mais hodiernos (e desmaterializados, como convém a adeptos do incorpóreo): “queimar” um “facho” na “praça pública” é uma expressão que extrai o seu sentido das fogueiras inquisitoriais, também elas ocorrendo em praças públicas diante de uma multidão – ontem usufrutuária presencial, hoje usuária digital – sedenta, hoje como ontem, de capturar e punir demónios, sobretudo quando são invisíveis: anjo das trevas que escapa ao olho não escapa à labareda. A distinção entre o Santo Ofício e a “cancel culture” é, também aqui, como a criança e Copérnico, de grau, não de natureza.

Se a regra cartesiana da evidência era: “jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal, isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir nos meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente ao meu espírito que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida” – a regra progressista, isto é, primitivista, é: jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não subordine forçosamente à ideologia, isto é, evitar cuidadosamente a realidade e os factos, e nada incluir nos meus juízos que não se apresente tão vago e tão indistintamente ao meu espírito que eu não tenha nenhum obstáculo para pô-lo ao serviço do preconceito. Também isto, não duvidem, é um discurso do método. Descartes, bem ou mal, com sucesso ou sem ele, pretendeu superar o “demónio da dúvida”, usando a própria dúvida como método de superação da dúvida. Os Descartes modernos e primitivistas, pelo contrário, não pretendem a superação, mas a supressão da dúvida. Não pretendem um método racional contra o engano de “génios malignos”: pretendem, como os hierofantes em que se inspiram, um mundo de enganos reinfestado de demónios.

Os pontos de vistas expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.