Com um mês de diferença, entre Julho e Setembro, estive em Budapeste e em Varsóvia. Embora não seja um fanático das errâncias – até porque viajei e viajo muito, mais por dever e trabalho que por prazer e turismo –, continuo a achar que respirar os ares das terras nos ajuda a entendê-las melhor.

Assim, faço o trabalho de casa – recapitulo a imaginação, a crónica e a história; e depois gosto de me entregar e de me deixar agarrar pelo espírito dos lugares.

A batalha e destruição de Varsóvia

De Varsóvia sabia da história trágica da nação polaca e da cidade mártir – um pouco a sorte de muitos destes povos e cidades da MittellEuropa, no limes dos Impérios históricos, civilizados ou bárbaros. A Polónia – como a Hungria – teve a sorte, ou a má sorte, de estar na encruzilhada da Prússia-Alemanha, da Rússia dos czares e dos bolcheviques e da Áustria dos Habsburgo de Viena. E entre ocupações e partilhas múltiplas, pagou o preço por ter sido a última fronteira cristã, católica, face a luteranos, ortodoxos, pagãos e materialistas históricos.

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Da última dessas partilhas passaram há pouco 83 anos. Nos finais de Agosto de 1939, em Moscovo, Ribbentrop e Molotov assinaram o pacto da divisão da Polónia. Dias depois, a 1 de Setembro, as tropas de Hitler avançaram, testando na longa planície polaca a Blitzkrieg. Os soviéticos invadiram pelo Oriente e, em quatro semanas, a Polónia voltava a perder a independência.

Seguiu-se um longo calvário. Varsóvia teria, nesse tempo, um milhão e duzentos mil habitantes, dos quais cerca de um terço eram judeus. Os ocupantes alemães desenharam então um gueto preventivo, isolando os judeus numa área da cidade e retirando daí os polacos não judeus. Em 1942, começaram a deportar os judeus do gueto para campos de trabalho e extermínio, como Treblinka. Na Primavera de 1943, quando Himmler determinou a sua remoção total, os judeus residentes no gueto não passariam de cinquenta mil; Himmler enfrentou alguma resistência armada, que esmagou, e os sobreviventes seguiram a fatídica estrada dos campos de trabalho e extermínio.

No Verão de 1944, foi a vez dos polacos arianos se revoltarem: a sorte da guerra dera a volta e as tropas de Hitler estavam em retirada para Ocidente. A resistência polaca, organizada militarmente no Exército Nacional Polaco – Armia Krajowa –, esperava que a ofensiva soviética, empurrando os alemães para Ocidente, fosse debilitando os ocupantes, e preparava um levantamento em várias cidades polacas: a Operação Tempestade.

Esta operação levava em conta a preocupação do Governo polaco no exílio, em Londres, de que os soviéticos se quisessem substituir aos alemães, eliminando qualquer veleidade de independência polaca. De resto, Estaline já obtivera, em Teerão, em Novembro de 1943, largas concessões territoriais de Churchill e Roosevelt.

Com isso, o “Czar Vermelho” pretendia alargar o domínio soviético para Ocidente, aproveitando a circunstancial cumplicidade interessada dos seus aliados capitalistas. Queria também garantir o aniquilamento de qualquer força militar nacional que, sob a orientação do Governo polaco no exílio, corporizasse a resistência à ocupação soviética, que iria usar como instrumento os comunistas polacos.

Foi o que veio a acontecer. Já no avanço para Ocidente, os soviéticos iam mostrar discretamente a verdadeira natureza dos pactos com os comunistas: quando uma força do Exército Nacional Polaco, comandada pelo general Krzyzanowski, tomou e libertou Wilno, os destacamentos da Secreta soviética armaram uma cilada aos polacos, prendendo o General e os oficiais, matando centenas de soldados e deportando uns milhares para Kaluga. O mesmo aconteceu em Lvov.

Varsóvia revoltou-se em 1 de Agosto de 1944, já com os soviéticos às portas da cidade. Ali estavam e ali ficaram, sem se mexerem, sem dispararem um obus, parando o avanço e permitindo que os alemães esmagassem a resistência.

Era um plano maquiavélico, com a lógica e a estratégia de Estaline bem claras: os alemães destruiriam a resistência armada polaca e assim, quando os fantoches do Comité Polaco de Libertação Nacional, o Comité de Lublin, formado por comunistas e esquerdistas, avançassem com as tropas russas, ninguém lhes oporia resistência.

Ao fim de dois meses, cerca de vinte mil combatentes polacos e talvez uns cento e cinquenta mil civis tinham morrido. Churchill e Roosevelt ainda insistiram com Estaline para que avançasse para libertar os polacos, mas depois desistiram. Como represália, além da cidade arrasada durante os combates, houve uma destruição sistemática de Varsóvia ordenada por Hitler.

O cerco de Budapeste

Varsóvia foi reduzida a escombros no Outono-Inverno de 1944-1945, com os patriotas polacos abandonados pelos aliados da coligação anti-Eixo. A Primeira Brigada Paraquedista Polaca, comandada pelo major general Stanislav Sosabowski, cujos elementos queriam voar e saltar em apoio dos compatriotas, foi impedida de intervir. (Seriam depois em parte sacrificados na malograda operação de Setembro de 1944, Market Garden, com Sosabowski – que no filme A Bridge too Far é encarnado por Gene Hackman – a avisar Montgomery, desde o princípio, contra a estupidez do ataque sobre Arnhem.)

Estava Varsóvia a acabar de ser arrasada e estavam os soviéticos – e os seus recém-aliados romenos – a aproximar-se de Budapeste. A Hungria tornara-se independente com o fim do império dos Habsburgo e sofrera uma das primeiras experiências de ditadura comunista com Béla Kun, entre Março e Outubro de 1919. Vencidos os comunistas, o almirante Miklos Horthy governou como Regente do reino da Hungria que, nos anos 30, procurou reaver parte das regiões que o país tinha perdido a seguir à Grande Guerra no tratado de Trianon — nada mais, nada menos que 66% do seu território.

O governo nacional-conservador e autoritário de Horthy manteve um parlamento e uma oposição. Havia também na Hungria uma corrente radical, fascistizante e anti-semita.

O facto de ter sido um Estado maltratado pela guerra e pela paz aproximava a Hungria dos poderes do Eixo, como a Alemanha, onde Hitler fora eleito graças ao ressentimento popular contra Versalhes. Com esta aproximação e alguma recuperação territorial à custa da Checoslováquia, da Roménia e, depois, da Jugoslávia, veio a aliança com Berlim, e tropas húngaras participaram na invasão da URSS, em Junho de 1941. Mas apesar da introdução de alguma legislação anti-semita, Horthy resistiu às medidas raciais mais radicais. Quando os soviéticos avançaram para Ocidente e perante a percepção de que a Alemanha ia perder a guerra, o Almirante quis negociar um cessar-fogo com os invasores russos. Os alemães anteciparam-se e puseram no poder Ferenc Szálasi, líder do partido nazi Cruzes de Flecha. Horny exilou-se e veio a morar em Portugal em 1957.

É neste quadro político que se dá o cerco e a destruição parcial de Budapeste, entre os últimos dias de 1944 e 13 de Fevereiro de 1945.

Os invasores, comandados pelo marechal Malinovsky, eram muitas centenas de milhares e no dia 26 de Dezembro fecharam o cerco à cidade, defendida por uma força germano-húngara de setenta mil homens. E havia oitocentos mil civis na cidade.

O cerco prolongou-se pelas primeiras semanas de Janeiro com os alemães – forças de Exército e das Waffen SS – e os seus aliados húngaros a recusaram qualquer rendição. Estaline reforçou os meios de ataque, os defensores abandonaram Pest e destruíram as pontes sobre o Danúbio. Em Buda, aproveitando as colinas, aguentaram mais algum tempo, com uma força das SS na cidadela de Gellért Hill, que finalmente caiu a 11 de Fevereiro. Nessa mesma noite, cerca de trinta mil soldados alemães e húngaros tentaram, a partir da colina do Castelo, romper o cerco e escapar da cidade. Milhares de civis tentaram a sorte com eles. A maioria foi morta pelos soviéticos. As unidades do Exército e das SS – a Florian Geyer e a 22ª Divisão de voluntários Maria Teresa –, bem como a maior parte dos combatentes húngaros, foram dizimados. Os civis mortos nos combates e de fome foram quarenta mil, e os soviéticos levaram cerca de seiscentos mil húngaros para os campos de trabalho na URSS. Duzentos mil terão morrido por lá.

Também em Budapeste houve cenas de violação sistemática de mulheres e raparigas, que depois se repetirão por toda a Alemanha tomada pelos soviéticos.

No cerco de Budapeste, o número de soldados comunistas mortos ficou entre os cem e os cento e sessenta mil.

Budapeste e Varsóvia foram reconstruídas e são hoje duas belas cidades europeias, capitais de duas nações orgulhosas e independentes, mas que continuam com a guerra à porta. Ontem era a vizinhança da Alemanha e da URSS, hoje é vizinhança da Rússia de Putin.

Em Roma, num debate entre nacionalistas de todas as nações da Europa, discutimos as experiências das nossas pátrias, das nossas nações.

A consideração da história das nações polaca e húngara – uma história de violência, opressão e ocupação pelos impérios da região, ora Moscovo, ora Berlim, ora mesmo Viena –, nações tão antigas como a nossa, mas com uma estatalidade difícil e trágica, devem ajudar-nos a perceber porque é que a Polónia e a Hungria resistem ao “suave jugo” do imperialismo de Bruxelas. É que já passaram por outros.