Quando Eça de Queiroz imaginou o cenário de A Cidade e as Serras já a Revolução Industrial havia feito grande parte do seu invernoso caminho e, em pleno século XIX, o grande mundo urbano dava os sinais definitivos de que alguma coisa havia mudado. E não eram apenas os maquinismos, inventos e refeições mais ou menos fantásticas que ocupavam as casas e as mesas de Paris. Era também o espectro, imposto pelo air du temps, de que a vida em Tormes estava irremediavelmente ultrapassada.

Vem isto a (des)propósito do debate, que, não sendo novo, é cada vez mais pungente, em torno da chamada quarta revolução industrial. A designação, que pode conduzir a equívocos, refere-se à segunda fase da Revolução Digital, que, nas suas subtis e aparentemente indolores vestes, e tendo arrancado no primeiro quartel deste século da Era da Informação, segue a bom ritmo, embora contrariando as mais generosas expectativas.

O debate público sobre a problemática da proliferação das novas tecnologias tem sido dominado por uma visão maniqueísta, que ora cai perto do endeusamento da tecnologia e das suas potencialidades, ora se fica pela diabolização de tudo quanto seja digital. Como em quase tudo, a virtude sempre se encontra no meio, aliás aí onde também está a responsabilidade, força motriz que deve guiar todas as discussões, e esta em particular.

O fundador do Fórum Económico Mundial, num livro lançado recentemente, veio introduzir na arena global o conceito de “indústria 4.0” (ou digital) para descrever uma realidade há muito conhecida e sentida: o tempo da terceira revolução industrial, assente na massificação dos computadores, a qual permitiu algum grau de automatização, está em vias de terminar. Essa revolução tem sido substituída por sistemas cada vez mais inteligentes e autónomos, capazes de permanecer constantemente ligados entre si e às pessoas, tornando os processos produtivos dos nossos dias parcialmente obsoletos. A inteligência artificial, a robotização, a automatização e as redes sociais são apenas os reflexos mais evidentes das transformações que assistiremos até ao fim deste século, muitas delas ainda por inventar.

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Debater as vantagens da tecnologia de ponta é mais ou menos o mesmo que discutir os benefícios do fogo: todos lhes reconhecem alguns, mas quem nele toca queima-se. Alertado o leitor, é inquestionável e incontestável o potencial da tecnologia para o desenvolvimento da Humanidade: apoiado nela, podemos sonhar em alterar a face do mundo tal como hoje o conhecemos. A mobilidade, a indústria, a sociabilidade, o bem-estar geral dos povos e, evidentemente, o trabalho, podem beneficiar muito do desenvolvimento tecnológico, conquanto o mesmo seja ditoso e consciente.

Começando pela mobilidade, e num planeta que opera hoje à escala global – onde, da nossa aldeia, se vê Universo inteiro – dependemos crescentemente de ligações, tanto físicas como virtuais, cada vez mais rápidas e eficientes. Somos, como nunca antes, um mundo em contacto permanente, que busca soluções integradas as quais vão além das tradicionais fronteiras geográficas. Reconhecemos a complementaridade existente entre espaços e a especialização das economias e retiramos valor acrescentado da possibilidade de actuarmos em conjunto no sentido de encontrarmos soluções para os desafios que a realidade nos impõe. De facto, a actual perfusão de (inter)conexões cria um sistema de tal forma complexo, interrelacionado e interpenetrado que é já impossível retroceder na forma de organização das nossas sociedades.

A este respeito, sempre se diga que o desenvolvimento da mobilidade no âmbito da tecnologia tem permitido libertar as pessoas de atividades extremamente perigosas e que antes provocavam, desnecessariamente, a perda de vidas. É o que acontece com a extracção mineira, com as operações de busca e salvamento e até, imagine-se, com o robot Manbo que opera nas águas em redor de Fukushima, buscando peças de reatores nucleares.

Quanto à indústria, as transformações são evidentes: um produto acabado que há poucas décadas poderia demorar vários turnos a ser concluído, é-o, hoje, numa questão de minutos ou horas, tornando obsoletos os velhos esquemas de produção. Este novo potencial produtivo beneficia da interacção entre o homem e a máquina, inclusive da substituição do primeiro pela segunda em certas tarefas. Mas, note-se, não é apenas a introdução da automação e da maquinaria de ponta na produção industrial que tem mudado a forma como as empresas produzem. É também o software de apoio que permite uma gestão eficiente dos processos, stocks, produtos e recursos (incluindo os humanos). Neste admirável mundo novo, as empresas não vivem já isoladas em bolhas, agindo e reagindo face à competição, mas só (co)existem em rede, e tanto assim é que à falha de um servidor de uma empresa em Portugal responde, em tempo real, o técnico mais habilitado, que pode estar no Japão ou na Alemanha. Falhas que poderiam demorar dias a ser resolvidas, são hoje tratadas em horas, pela convocação dos conhecimentos e das skills de especialistas espalhados pelo globo.

As múltiplas redes sociais, as várias ferramentas da economia colaborativa e os novos paradigmas de negócio baseados nas redes, têm, num curto espaço de dez ou mais anos, provocado mudanças perceptíveis: hoje, deixamos de comprar CD’s, de alugar filmes, de enviar cartas, de comprar viagens nas agências, de abrir enciclopédias físicas, de consultar as Páginas Amarelas, de enviar SMS e MMS, de depender dos jornais e das televisões para obter a dose diária de informação, de ver séries na TV, de só dispor do Táxi e dos transportes públicos para nos deslocarmos dentro da cidade, de consultar os classificados nos jornais, de revelar fotografias e de depender do fotógrafo profissional para a sua edição, de só abastecermos os nossos veículos com combustíveis fósseis, de só ver pessoas a conduzir carros, de gravar ficheiros em Pen Drive, de ir a uma agência bancária, de ir só ir ao shopping para fazer as compras, entre muitos outros exemplos.

Há, evidentemente, desvantagens e problemas associados a todas estas mudanças, a começar por uma certa alienação global e por uma transformação (às vezes no sentido do empobrecimento) dos tradicionais modos de convivência. Todavia, é ainda cedo para concluir o que quer que seja acerca das mudanças em curso: por esta altura, só podemos levantar um pouco o véu sobre o modo como nos relacionaremos no futuro, certos de que os exercícios comparativos têm como pressuposto a comparabilidade dos fenómenos, o que, neste caso, não está assegurado. Assim, e deste ponto do caminho, daqui para a frente não conviveremos melhor ou pior, mas, simplesmente, de outro modo, modo esse que, além de requerer uma compreensão específica, apresenta os seus próprios desafios.

Em todo o caso, é absolutamente inegável que a tecnologia, intimamente associada à ciência, revolucionou o bem-estar geral e a qualidade de vida da sociedade no último século e meio. Morre-se menos, come-se mais e melhor, vive-se com mais conforto e trabalha-se com maior eficiência e realização. A inovação continuada e ininterrupta leva a crer que podemos pensar em alcançar novos patamares de bem-estar para a Humanidade, erradicando doenças e terminando com a fome nos lugares do globo onde ela ainda grassa, objectivos que devem ser prioritários.

A inovação tecnológica e o desenvolvimento da indústria digital têm, indubitavelmente, criado maior celeuma no mundo do trabalho. A substituição de postos de trabalho tradicionais por postos digitais, praticamente sem necessidade de mediação humana, tem-se traduzido em preocupações crescentes quanto à manutenção dos níveis gerais de emprego. De facto, vários autores têm questionado até quando viveremos numa “sociedade baseada no trabalho”. Os estudos notam que cerca de 50% do tempo usado actualmente para actividades laborais poderia ser automatizado com recurso às tecnologias existentes, sendo que, em 2030, esse potencial chegará aos 67%.

Os dados mais credíveis revelam que o risco de extinção de postos de trabalho que conduza a um cenário de “desemprego tecnológico” é real. Não obstante, estes dados dão origem a um debate inflamado e pouco informado no seio da opinião pública. Quando se discutem as consequências da automatização, da robotização e do florescimento da inteligência artificial no mundo do trabalho, estamos sobretudo a discutir as consequências desses fenómenos para um certo tipo de funções e tarefas, precisamente as mais rotineiras e repetitivas. Realmente, são esses os postos mais susceptíveis de serem automatizados e, por isso, extintos. A OCDE estima que cerca de 14% do total de postos de trabalho sofram esse risco de extinção a médio-longo prazo. Outros 32% poderão sofrer mudanças significativas na forma como são executados, sem que, contudo, se percam. Em Portugal, fala-se em cerca de 1 milhão de postos de trabalho que, até 2030, estarão em risco de se perder, principalmente nos sectores da indústria transformadora e do comércio.

Isto dito, o risco de automatização é menor nas tarefas relacionadas com a percepção e a manipulação, particularmente as que envolvam execução em locais de trabalho pouco estruturados ou de elevada complexidade. O mesmo vale para as tarefas altamente criativas, que impliquem a mobilização de ideias originais e bem assim as actividades relacionadas com a inteligência emocional e social, que envolvam tarefas como a compreensão das reacções dos outros em contextos sociais ou tarefas relacionadas com a assistência e os cuidados.

Acontece, porém, que o perigo de obsolescência de muitos postos de trabalho, principalmente os menos qualificados, tem de ser sopesado com a dinâmica em torno da inovação tecnológica. Na verdade, todas as previsões relativas à perda de emprego e automação do trabalho são meras possibilidades técnicas, dependentes de uma enorme variedade de factores. Por outro lado, as previsões têm sido consistentes a demonstrar que ao risco de desaparecimento e transformação de algumas actividades está associada uma enorme potencialidade de criação de emprego em outras áreas (ciência, assistência social, saúde, profissões técnicas, educação, construção, etc.). E que, portanto, num cenário optimista, os empregos perdidos de um lado seriam substituídos por outros. Claro está que esta reconversão profissional está em grande medida dependente da capacidade de formação profissional, de modo a que os trabalhadores adquiram novas competências, novas formas de pensar e de trabalhar, tudo numa perspectiva de formação holística e completa.

Em 2017, a economia digital representou 4,6% do PIB português (9 mil milhões de euros), contra 13,8% no Reino Unido. A expectativa de que este valor venha a crescer em Portugal e no mundo ao longo da próxima década é enorme.

A quarta revolução industrial será mais rápida, mais profunda e maior do que as anteriores, sendo expectável que transforme por completo os sistemas sobre os quais a nossa sociedade assenta. As suas consequências são ainda, em grande medida, imprevisíveis. Sabe-se, porém, que essa revolução, como todas as anteriores, aliás, tem associado um potencial de exclusão que tem de ser combatido à nascença, promovendo-se a inclusão como valor das sociedades digitais. Hoje e sempre a tecnologia tem de estar ao serviço da humanidade e não o contrário, sob pena de, e voltando à Cidade e as Serras, termos um cenário mais ou menos semelhante a este: «[…] os séculos rolam; e sempre imutáveis farrapos lhe cobrem o corpo, e sempre debaixo deles, através do longo dia, os homens labutarão e as mulheres chorarão. E com este labor e este pranto dos pobres, meu Príncipe, se edifica a abundância da Cidade! […] Se nas suas tigelas fumegasse a justa ração de caldo – não poderia aparecer nas baixelas de prata a luxuosa porção de foie gras e túbaras que são o orgulho da Civilização.»

Este é um dos temas que abordarei no www.labour2030.eu.

Advogado, especialista em Direito do Trabalho