Tive recentemente oportunidade de participar no lançamento de uma notável colectânea de crónicas acabada de publicar por António Guerreiro, Zonas de Baixa Pressão (Editora 70). Entre as diferentes secções nas quais o autor reuniu muitas das crónicas publicadas durante vários anos no Público, colocou no centro delas um capítulo destinado a ilustrar uma recente teoria de origem francesa que me era desconhecida. Trata-se da «colapsologia em curso», como Guerreiro lhe chama, , onde a teoria é, por assim dizer, ilustrada pela devastação ambiental e turística das cidades e dos espaços rurais onde vivemos, a exemplo de outros «colapsos» que afectam grande parte do mundo.

Tais conceitos, bem como os numerosos casos concretos de outro tipo de colapsos fornecidos pelo autor já antes de desencadeada a pandemia em curso, como é o caso da escolarização, não podem ser dissociados da pandemia. Num duplo sentido: tais sinais de colapso actuaram primeiro como prenunciadores da globalização instantânea do vírus e depois como impedimentos à reposição automática do statu quo ante, ou seja, do regresso à situação anterior. Isso significa que aquilo que aí vem não será como «antes»!

Com efeito, a pandemia teve como efeito imediato e permanente o colapso universal dos sistemas sócio-económicos bem como da maioria dos sistemas de saúde, os quais tiveram de se dedicar à contenção da pandemia deixando de acorrer às outras doenças, de tal modo que a mortalidade das pessoas mais velhas aumentou bruscamente, levando à diminuição da esperança de vida e até à redução de populações como a nossa. Por outras palavras, se a situação demográfica nacional já era mundialmente extrema antes da pandemia, depois desta será ainda pior e com efeitos sócio-económicos previsíveis: Quem paga as pensões? Quem paga a saúde? Quem paga as creches e as escolas?

Significa isto que, apesar da rapidez da descoberta de vacinas relativamente eficazes, qualquer colapso na contenção da pandemia, seja por efeito limitado das vacinas, seja pelas sucessivas mutações do vírus ou devidos aos previsíveis disfuncionamentos organizacionais, o facto é que o risco pandémico não cederá rápida e eficazmente à vacinação de modo a repor muitas das anteriores formas de vida profissional e social. Tal risco tão pouco favorece a manutenção dos níveis anteriores da produtividade laboral, nomeadamente no que diz respeito ao chamado trabalho à distância – isto é, a domicílio – na maioria dos países que não está preparada para tal nem do ponto de vista habitacional nem educativo, como é o caso óbvio de Portugal e de tantos outros países.

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Sem esta antologia de crónicas de António Guerreiro, seria muito difícil senão impossível comunicar a forma e o conteúdo como o caminho de cada um colapso social em curso se está a fazer de modo diverso mas inevitavelmente convergente, como sucede em qualquer sistema complexo do qual se costuma dizer com razão: tudo está interligado! Passo sobre aquilo a que o autor chama «a matéria política», pois esta é, simultaneamente, a mais batida e a menos resolvida seja por quem for. Em vez da politiquice, mencionarei o capítulo dedicado aos «media, jornalismo e respectivas sombras», desde aquilo a que Guerreiro chama e bem «a ciber-democracia» – cada um diz o que lhe passa pela cabeça! – até à invenção de algo como um pretenso «fact-checking» que actua em substituição do jornalismo propriamente dito pela opinião pública e o comentário político.

Mais sério na realidade, apesar do carácter manifestamente sensível da matéria, é o capítulo ironicamente dedicado pelo autor ao «sexo, género e outras maldições». Trata-se, como todos sabem, de uma questão de importância política cada vez maior, o que faria de algum modo que a sexualidade se tornasse, devido justamente à sua actual condição politizada, para não dizer partidarizada, numa «coisa obsoleta» e «banal», como Baudrillard há muito tempo havia ao declarar ironicamente «a sexualidade como uma doença transmissível»! Em sentido aparentemente oposto aos lugares ocupados pelos sexos nas escolas, o autor notara entretanto que o atraso crescente dos rapazes em relação às raparigas na generalidade dos países é algo que deforma a escola tanto como a relação inversa entre rapazes e raparigas a deformaria também. Talvez a relação entre sexos seja um desses casos ingratos de soma nula…

Para além das chamadas questões do nosso tempo, como a «política» e os «media», o capítulo consagrado à «colapsologia em curso» constitui porventura o mais articulado do discurso do autor acerca do funcionamento actual da sociedade portuguesa no contexto de uma competição global para a qual não possuímos nem de longe todos os meios necessários. A descrição que o autor faz do que se está a passar na cidade e no campo como alvos do turismo exterior e interior ilustra, à imagem fantasmática de Veneza a afundar-se, a teia de colapsos em que estamos globalmente envolvidos sem margem de distância nem muito menos de mudança.