Quando nos debruçamos sobre temas difíceis, como o da tragédia do liberalismo, devemos começar pelas perguntas primordiais. E uma dessas perguntas é: para que serve a filosofia? (Podem parecer assuntos distantes, mas vou tentar mostrar que se relacionam.) Como sempre acontece no reino filosófico, a doutrina divide-se. Para Platão, a filosofia visa a verdade; para Marx, deveria transformar o mundo; para os puristas, não vale pela sua finalidade. Pela minha parte, quando tento provar que a filosofia é útil no domínio da ciência política (contra os que entendem que ela é dispensável), costumo adotar uma perspetiva wittgensteiniana: a filosofia ajuda na árdua tarefa da clareza conceptual, isto é, no esforço fundamental de esclarecer os termos e os conceitos que usamos, pois só isso permite uma conversa política frutífera – conversa a que estamos condenados por termos esta terrível natureza social.

Isto significa que devemos ter em conta as palavras que usamos e esclarecer o sentido com que usamos essas palavras, i.e., a sua história, o seu contexto teórico ou a inovação que pretendemos introduzir. Assim, se queremos levantar a hipótese de haver uma dimensão trágica no liberalismo, convém que esclareçamos em primeiro lugar o que queremos dizer com a palavra liberalismo. E esse esforço é particularmente relevante uma vez que o termo é hoje usado de muitas formas, quase todas legítimas, mas muitas vezes contraditórias, como acontece quando, nos Estados Unidos, os liberals representam a esquerda (por oposição aos conservadores), enquanto na Europa os liberais são quase sempre associados à versão económica do liberalismo e, por isso, colocados à direita.

Para efeitos do presente texto, a palavra liberalismo remete para a tradição filosófica que nasceu em contexto inglês no século XVII e que, de acordo com Pierre Manent, constitui “a base contínua da política moderna, da Europa e do Ocidente, desde há cerca de três séculos”. Filosoficamente, não podemos pensar no liberalismo sem passar por Thomas Hobbes (o primeiro autor a apresentar uma teoria amadurecida do contrato social, e com isso a inaugurar o individualismo moderno e o princípio da igualdade política). Mas é com John Locke, que escreve durante a Revolução Gloriosa de 1688, que o liberalismo começa a ganhar forma: partindo do valor da liberdade individual, o liberalismo político traduz-se numa teoria de limitação do poder político. O mesmo é dizer: a garantia de liberdade individual exige um poder político juridicamente limitado (por uma Constituição, leis gerais e abstratas, separação de poderes, declarações de direitos individuais).

Foram estas ideias, amadurecidas ao longo do século das Luzes, a enquadrar as revoluções liberais do final do século XVIII e início do século XIX, moldando uma visão política moderna, que, a partir de uma perspetiva individualista e voluntarista, se apoia na ciência e na tecnologia para defender a dimensão emancipadora da razão e da liberdade e para alimentar a crença na civilização e no progresso.

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O sucesso do liberalismo

O liberalismo tem, naturalmente, os seus críticos e inimigos: politicamente, encontramos correntes iliberais (como o comunismo, o fascismo, o nacional-socialismo ou as perspetivas identitárias) e correntes que procuraram moderar os seus excessos (como a social-democracia ou a democracia cristã); filosoficamente, temos teorias que criticam a ênfase excessivamente individualista do liberalismo (como o comunitarismo) e outras que apontam ao seu insuficiente individualismo (como o pensamento libertário).

Mas nenhuma destas posições contestaria a hegemonia do liberalismo, o que transforma a vitória do liberalismo e das Luzes numa vitória cultural. É por isso que, como Jaime Nogueira Pinto explica em Bárbaros e Iluminados,

“Ser contra as “Luzes” é não “ousar saber”, é ser-se, à partida, um defensor do obscurantismo, da barbárie, da ignorância, do imobilismo. É ser-se um reacionário, um cavernícola, uma espécie de Cro-magnon atravessado na estrada do Progresso, esbracejando patético e atravancando a marcha da História.”

E o seu sucesso levou a que, gradualmente, o pensamento liberal tendesse a considerar a comunidade, as tradições, a religião, a família e o sentido de pertença como constituindo limitações à nossa liberdade individual, pelo que garantir a mais ampla esfera de autonomia individual significava uma emancipação dessas condições.

A tragédia do liberalismo

Nas últimas décadas, vários autores têm chamado a atenção para o facto de esse esforço de emancipação ter conduzido a uma situação paradoxal: na sua tentativa de “libertar” o indivíduo, de o “emancipar” das condições sociais e culturais, o liberalismo acabou por isolar o homem e deixá-lo mais vulnerável, levando a que a existência do estado se tivesse tornado não só mais necessária, como mais extensa. Este argumento, que encontramos logo em François Guizot, mais tarde em Karl Polanyi e depois em Alain de Benoist, é recuperado por Patrick Deneen em Porque está a falhar o liberalismo?:

“a exigência insistente para escolhermos entre a proteção da liberdade individual e a expansão da atividade estatal mascara a verdadeira relação entre o Estado e o mercado: estes crescem constante e necessariamente juntos. O estatismo permite o individualismo e o individualismo exige o estatismo.”

Isto acontece porque, quando privilegiamos a emancipação individual, dissolvemos as raízes comunitárias e familiares que dão contexto à nossa vivência e servem de rede de apoio – se vivemos mais isolados, se nos tornamos mais “independentes”, passamos a depender mais do estado para nos proteger em situação de carência. Por outro lado, quanto mais nos centramos em decisões individuais, mais tendemos a ver o outro como uma ameaça à nossa autonomia e passamos a exigir que o estado nos proteja desse Outro ameaçador, seja criando casas de banho à nossa medida ou limitando a expressão que nos pode ofender.

Nada disto estava, na verdade, em John Locke (nem na tradição liberal britânica do século seguinte): não só a sua preocupação se centrava em garantir um poder político limitado, como reconhecia a importância fundamental das instituições e das estruturas sociais (nomeadamente, religiosas) por assegurarem as necessárias regras sociais de autodisciplina e sociabilidade. Ao contrário de Jean-Jacques Rousseau, não há no liberalismo uma luta contra a sociedade, e a identidade individual não é construída contra os outros ou contra as regras socialmente estabelecidas, mas antes contra o poder abusivo e discricionário do estado.

A tragédia da Iniciativa Liberal

Entre nós, a tragédia do liberalismo tornou-se especialmente visível com o conflito interno que parece dividir a Iniciativa Liberal entre uma ala mais conservadora e outra mais progressista. Essa divisão levou à saída de vários militantes em abril, motivada pela tomada de posição da IL na discussão sobre a autodeterminação de género nas escolas, e que Mariana Nina explica particularmente bem neste Direto ao Assunto. E poucas semanas depois, as redes sociais assistiram a uma efusiva troca de argumentos sobre a posição que o partido devia adotar quanto à adesão da cidade do Porto ao Rainbow Cities Network.

O cerne destes conflitos encontra-se nos termos aqui focados: quando nos centramos no liberalismo como uma doutrina de radical emancipação individual, ficamos cativos de todos os argumentários que se apresentam como emancipadores. É isso que acontece com as narrativas baseadas na ideologia de género: a ideia de que o sexo (masculino ou feminino) é um mero produto histórico e cultural imposto pela sociedade, constituindo, nessa medida, um entrave à autonomia individual, apresenta-se como uma narrativa muito apelativa para aquele tipo de perspetiva liberal. Se o liberalismo se afirma como emancipatório, defendendo que a identidade resulta de uma escolha individual e que os obstáculos sociais a esse exercício livre devem ser levantados, então um liberal não poderia subscrever outra posição que não a ideia defendida pelos movimentos que argumentam que a nossa identidade sexual depende da nossa escolha individual.

No entanto, essa invocação de uma liberdade absoluta é antes uma característica do pensamento rousseauniano, que, como diz Pierre Manent, promove uma redefinição da natureza humana: “a natureza do homem é não ter natureza, mas ser uma liberdade”. Neste sentido, para Rousseau,

“[o] indivíduo do liberalismo não era interiormente livre; Rousseau não é liberal, mas o seu indivíduo é livre. Ele vai assim fornecer às sociedades liberais o sentimento íntimo e imediato pelo qual o indivíduo toma consciência de si próprio, pelo qual o homem se prova como, ou se quer, indivíduo.”

A ideia de emancipação total (da natureza e da sociedade) parece, desta forma, beber do pensamento iliberal, gerando, como consequência, a crescente necessidade do estado (sabemos como o iliberalismo de Rousseau conduz a regimes totalitários). E é precisamente isto que se tem vindo a registar nos países onde esta agenda está mais avançada: quanto mais enveredamos pela narrativa de que a nossa identidade resulta de uma mera escolha individual, mais necessidade temos de que o estado proteja e garanta essa escolha, levando a uma intervenção estatal crescente para desmantelar estruturas sociais tradicionais e erguer novas proteções. Como diz Deneen, o individualismo exige estatismo.

Um espírito liberal deve, nessa medida, olhar com suspeita para a argumentação da identidade enquanto livre escolha individual. Aceitar essa argumentação parece, na verdade, esquecer os princípios liberais fundamentais: o de que o problema fundamental é o exercício abusivo do poder político e não a sociedade; o de que as instituições e as regras sociais legadas pelas gerações anteriores são fundamentais para a autodisciplina e para uma vivência social pacífica; e o de que as áreas de conhecimento sedimentadas através do método científico não podem ser postas em causa pelo desejo pessoal e individual.

Iludidos com a ideia de liberdade absoluta, muitos liberais tendem a esquecer-se destes princípios, mas, ao fazê-lo, correm o risco de abrir a porta a regimes iliberais, o mesmo é dizer, a figuras fortes que prometem pôr a casa em ordem.