A Comissão Europeia apresentou recentemente uma Proposta de Diretiva que, entre outros aspetos relevantes, pretende regular e clarificar o estatuto profissional dos indivíduos que trabalham nas – ou através das – plataformas digitais.

Para o efeito, e à semelhança do exemplo do Governo Português (vide artigo 12º-A da Proposta de Lei que procede à alteração da legislação laboral no âmbito da agenda do trabalho digno), a Diretiva propõe a criação de uma presunção legal de existência de contrato de trabalho, em caso de verificação de, pelo menos, dois indícios de controlo da atividade, que passam pelo nível de retribuição, pelo cumprimento de regras estabelecidas pelo operador da plataforma, pela supervisão do trabalho feita pelo operador, pela imposição de restrições à liberdade de trabalho e pela existência de regras de exclusividade.

Posto isto, importa reconhecer que as plataformas digitais cruzam novas questões com velhos desafios e, por isso, é um dos elementos mais nevrálgicos das discussões sobre o futuro do trabalho.

De entre a miríade de possíveis temas, optámos por deixar à reflexão do leitor a questão de saber se, na verdade, esses desafios são novos ou se, pelo contrário, correspondem antes a desafios antigos (isto é, que já se colocaram anteriormente e que surgem agora, uma vez mais, reciclados e recondicionados, a pretexto das novas tecnologias). Por isso, em termos práticos, entendemos que importa, portanto, saber se:

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  1. Há, de facto, a necessidade de criar novos mecanismos legais que ajudem na resolução da qualificação do vínculo existente nas plataformas digitais? E, em caso afirmativo, que mudanças são necessárias de forma a adaptar o direito do trabalho a esta forma de prestar trabalho?
  2. Ou, pelo contrário, existem instrumentos no nosso ordenamento jurídico que já respondem a estas preocupações (isto é, institutos jurídicos preexistentes que se possam aplicar e, consequentemente, resolver o “problema” da tipologia)?

Começando pelo mais prosaico, a Lei n.º 45/2018, de 10 de agosto, que ficou conhecida como “Lei Uber”, determina que, independentemente da denominação que as partes tenham dado ao contrato celebrado, a esse contrato será aplicável a presunção de laboralidade constante do artigo 12.º do Código do Trabalho (CT).

De forma a facilitar a qualificação contratual, o legislador estabeleceu no artigo 12.º do CT uma presunção de laboralidade, que utiliza alguns dos indícios do método indiciário, por forma a operar uma inversão do ónus de prova. Ou seja, para combater a fuga ao direito do trabalho e simplificar a prova da existência de um contrato de trabalho, foi estabelecida uma presunção que opera a favor do trabalhador.

O que significa, por outras palavras, que a lei permite assim ao trabalhador apenas alegar os indícios de subordinação jurídica que, no caso, considere preenchidos, bem como a existência dos restantes elementos essenciais do contrato de trabalho. E, concomitantemente, nasce na esfera do empregador a tarefa de ilidir a presunção, mediante contraprova que evidencie a inexistência de subordinação.

Eis-nos ora perante a magna questão: se o problema fosse colocado perante os tribunais portugueses, a atual presunção de laboralidade constante do artigo 12.º do CT seria suficiente para resolver (adequadamente, leia-se) a questão da qualificação do vínculo?

De facto, pensamos que dificilmente os indivíduos que trabalham nas – ou através das – plataformas digitais conseguiriam beneficiar daquela presunção de laboralidade.

E porquê? Por um lado, os vínculos estabelecidos entre as plataformas digitais e os indivíduos que trabalham nas mesmas são inovadores, em nada se assemelhando às tradicionais relações laborais fordistas/tayloristas; e, por outro, atendendo às especificidades das plataformas digitais, não seria fácil de provar a existência de (pelo menos) duas das características elencadas nas alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 12.º do CT.

Aqui chegados, o busílis da questão reside precisamente neste ponto: as novas formas de organização de trabalho necessitam de ser acompanhadas de uma regulação que acompanhe os tempos e transpareça a sua realidade, em constante atualização e mudança, não se bastando para o efeito apenas uma “adaptação” ou “reformulação” dos indícios previstos no atual artigo 12.º do CT, uma vez que esta tem subjacente uma matriz e realidade totalmente distinta e, por isso, insuficiente para fazer face a todas as preocupações que nascem com a on-demand economy.

De modo que fique claro: não se pretende, de todo, acabar com o método indiciário ou os indícios constantes do atual artigo 12.º do CT. Entendemos, antes, que aquele método e os indícios ainda fazem falta e sentido, mas somente nos dão respostas adequadas para uma parte da realidade. O que significa que, assim sendo, é necessário encontrar uma solução que preencha este vazio e trate cabalmente a outra parte da realidade (isto é, as plataformas digitais).

A solução deverá, por um lado, trazer uma resposta eficaz ao nível da sua regulação; por outro, deverá procurar assegurar o equilíbrio saudável entre o crescimento económico e a inovação tecnológica; e, de forma a coexistir com as demais, conferir uma adequada proteção aos indivíduos que trabalham nas – ou através das – plataformas digitais.

Com o efeito, aqui chegados, parece-nos que das duas, uma:

  1. ou a presunção do artigo 12.º do CT é atualizada e enriquecida perante esta nova realidade, de forma a incluir novos indícios que facilitem a inversão do ónus da prova;
  2. ou se procede à criação de uma presunção de laboralidade adaptada ao trabalho nas plataformas digitais, para tornar mais clara e efetiva a distinção entre trabalhador por conta de outrem e trabalhador por conta própria, que, inter alia, inclua, pelo menos, os indícios constantes do artigo 12º-A da Proposta de Lei que procede à alteração da legislação laboral no âmbito da agenda do trabalho digno.

Concluímos, assim, com brevíssimas notas finais:

  1. É devido um especial reconhecimento ao Governo pela coragem e vontade demonstradas em aprofundar a regulação destas novas formas de prestação de trabalho atípicas associadas às transformações no trabalho e à economia digital (e, desde logo, ao trabalho nas plataformas);
  2. Atendendo à especial urgência da regulação no âmbito das economias colaborativas, a Comissão Europeia soube estar à altura da oportunidade e dar passos relevantes no sentido de assumir as rédeas nesta matéria por forma a: (i) facilitar a sua integração no espaço europeu; (ii) balizar a intervenção dos Estados Membros; (iii) evitar possíveis entraves ao crescimento económico e à inovação tecnológica; (iv) disponibilizar ferramentas que permitam reforçar as garantias laborais e sociais.
  3. A proposta de diretiva da Comissão relativa às condições de trabalho nas plataformas digitais será agora debatida pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho. Uma vez adotada, os Estados-Membros disporão de dois anos para a transpor para o respetivo ordenamento jurídico.

O tiro de partida está dado e cá estaremos para acompanhar atentamente os próximos capítulos. Independentemente do rumo escolhido, acreditamos que esta não será a última vez que falaremos sobre o tema.