Corria o ano de 1986 quando os portugueses acreditaram que a adesão à CEE lhes passava a conferir o direito de vir a ter o nível de vida dos alemães ou dos franceses. Com toda a panóplia de fundos a validarem a crença, nesses anos de Cavaco acreditava-se que a jornada seria imparável e com terminus no podium. Mas logo em 1995 ia-se notando que a aparência se sobreponha ao engenho e que alguma coisa não batia certo. Nesse mesmo ano, como resposta aos primeiros sinais de dessincronização, resolveu-se formalizar a ilusão como desígnio nacional. Guterres, com a sua lengalenga desconcertante, ensaiava os primórdios de uma economia voltada para o consumo interno e endividamento como disfarce da insuficiente competitividade de uma economia cada vez mais global.

Depois do pântano, já em 2002, continuou-se na senda, mas desta vez entregando o testemunho a um indivíduo de direita muito sabido, carregado de ambição pessoal, e que prometia em 15 anos colocar Portugal no topo. Mas num instante a ambição pessoal sobrepôs-se a tudo o mais. Abandonado o país a um astrólogo, provou-se que as cartas e a astrologia, apesar da diversão que oferecem, são instrumentos completamente inúteis na administração da coisa pública.

Sem travões, em 2005 chegava a hora de outros ilusionistas venderem o seu produto. Foi uma época em que os desmandos, em roda-livre, andavam à solta. Falava-se de milhões, estratégias, campeões nacionais, alavancagens, etc. Qualquer bimbo com palavreado do Financial Times que aparecesse embrulhado num fato de fino recorte, e que tivesse acesso privilegiado aos cofres de bancos dominados por agachados e bandidos, passava por referência, viessem eles da ruralidade ou do requinte. Neste turbilhão, e com a ajuda da crise financeira mundial, a festa terminava oficialmente em 2011 e seguintes com tudo afogado em dívidas e imparidades.

Mas se a festa passou a ser coisa do passado, a ilusão não fora removida das cabeças dos portugueses. Enxotado o inconveniente Passos Coelho, esse inconvertível, Costa e demais geringonços, muito astutos, acenavam de novo com ilusões à boleia da boa herança, do BCE, da conjuntura, e da descoberta das cativações. E foi neste maravilhoso alinhamento dos astros que surgiu Marcelo como o agente que deu gás adicional a esta segunda vaga de ilusões.

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Com folha limpa, inteligente, desencantado, professoral, próximo, intriguista, atencioso, verbal, carente, diletante, e com necessidades de estima incomensuráveis, Marcelo viajava, melhor, levitava por entre e sobre os portugueses, para embevecimento destes e deleite daquele, pois que as características que concentra revelam muito daquilo que o português anseia, e, simultaneamente, é: um ser idealista e iludido. Esta comunhão entre Marcelo e os portugueses, de tanto alimentar um e alentar os outros, consagrou-se com a vitória esmagadora na sua reeleição, o espelho máximo dessa simbiose.

Acontece, porém, que o Divino concebeu este mundo com outros ventos para além dos favoráveis. Enquanto os alinhamentos dos astros funcionaram e duraram, os defeitos e os erros deste eleito, apesar de sempre irem dando aqui e ali os seus sinais, não emergiram, ou, pelo menos, não adquiriram aquela dimensão e inconveniência que fizessem estremecer essa simbiose. Por outro lado, as qualidades, apesar de darem sinais de esgotamento, continuavam a cumprir.

Mas é da natureza das coisas as últimas gotas derrubarem muros. Se o PS foi derrubado por estantes de livros e caixas de vinho, o falatório de Marcelo sobre o filho e o assomo wokista em cima de tudo o resto, que é imenso, derrubaram-no. Caída a ficha aos portugueses, calhou ainda nessa semana, para sorte destes e para azar daquele, um jovem maduro colocar as coisas no seu lugar. Um tal de Bugalho, um adulto com aspeto infantil, desmontava Marcelo, um infantil com aspeto de adulto, refutando nas TVs num tom assertivo e afoito a forma improvisada como este qualificara a sua escolha, constatando, com ironia, que essa crítica correspondia ao que na prática o próprio instituíra como forma de exercício da sua presidência. E em jeito de estocada final deixava ainda claro que o foco da sua equipa não é comentar a polémica do dia-a-dia, coisa que a comunicação social e Marcelo não terão achado a mínima graça.

E é nesta fase em que os portugueses se começam a dar conta de que os engodos e a espuma diária não lhes servem, que, paradoxalmente, Marcelo pode vir a ser de utilidade nos dois anos que lhe restam de mandato. Não como agente de qualquer transformação, uma impossibilidade natural, mas como exemplar que personifica a ilusão. No fundo, o contrário do que, e de como, se deve ser em política.

Nesta fase, depois de cumprido o ajustamento económico e financeiro, falta ainda completar o ajustamento político, um assunto a decorrer nos partidos e nas urnas, e que vai dando os primeiros passos. Para melhor o realizar é vantajoso possuir um exemplo ilustrativo ainda no ativo, real e fidedigno, de como foi pernicioso para Portugal o rol de artistas que nos infestaram com ilusões nas últimas décadas, de modo que, durante esse processo corretivo, nunca nos esqueçamos o quão perdidos andámos. Um pouco como no filme Elizabeth, de 1998, quando a rainha poupa a vida ao traidor Lord Robert, seu amante, quando diz a Walsingham: And I will make an example of him. He shall be kept alive to always remind me how close I came to danger (E eu farei dele um exemplo. Ele deverá ser mantido vivo para que me recorde sempre o quão perto estive do perigo).

É assim, solto, em roda-viva, convencido, e sem filtros, que Marcelo pode ainda ser aproveitado por Portugal, um país que começou por aspirar alcançar a Alemanha e que acabou a fingir que não era ultrapassado por todos. Doravante, olhe-se para Marcelo, e, em uníssono, diga-se: nunca mais tiro os pés do chão.