Conhece a sensação desesperante de comprar um qualquer gadget eletrónico, querer usá-lo imediatamente e verificar que vem sem pilhas ou que a sua bateria não está carregada, tornando-o temporariamente inutilizável e forçando-o a esperar? Imagine-a agora com um catamarã. Multiplique por nove. Some-lhe 52,4 milhões de euros. Aqui temos o cenário dantesco, mais um, que o Governo e a Administração da Transtejo montaram.
Ficámos recentemente a saber, pelas mãos dos juízes do Tribunal de Contas, que a Transtejo adquiriu 10 catamarãs elétricos por 52,4 milhões de euros e que 9 deles vieram sem as baterias que lhes permitiriam navegar e que para serem disponibilizadas custariam mais 16 milhões de euros aos contribuintes.
A aquisição das embarcações, com o objetivo de renovar a frota que transporta diariamente dezenas de milhares de pessoas entre a Margem Sul e Lisboa, teve o seu primeiro ato em 2019 com o lançamento do concurso que previa também a manutenção durante 16 anos e que com esse serviço fez aumentar a fatura para os 90 milhões de euros.
Mais, aos 90 milhões que o Estado já investiu em embarcações, acrescem ainda 14,4 milhões de euros, num procedimento adjudicado no final de 2022, para a construção das estações de carregamento das embarcações elétricas, fixando o investimento comprometido em 120 milhões de euros.
Se o investimento era bem-vindo, urgente e essencial para garantir um serviço de transportes de qualidade para quem trabalha na capital, mas escolheu o outro lado do rio para viver, a notícia que faz manchetes vem pôr em causa todo o investimento e, tendo a aquisição por ajuste direto das baterias sido reprovada pelo TC, em causa fica também a qualidade dos transportes fluviais no futuro.
Como não podia deixar de ser, o escândalo tornado público resultou já na demissão em bloco da Administração da empresa, mas, como também já nos habituaram, as responsabilidades políticas tardam e dificilmente chegarão.
Quando se trata de um investimento estrutural, que moderniza património do Estado, que garante condições de transporte coletivo a dezenas de milhares de pessoas e que liga dois dos três maiores distritos do país em termos populacionais, exige-se competência, quer na gestão técnica, quer na gestão política. No tema que aqui discutimos verifica-se, manifestamente, que a incompetência reinou e que, mais uma vez, são os contribuintes os principais prejudicados.
Contribuintes esses que são prejudicados sempre que os barcos estão avariados e, por isso, não saem do cais, que são deixados em terra sempre que não existem tripulantes suficientes para garantir o regular funcionamento das embarcações e que são forçados a procurar alternativas quando, sem aviso, se suprimem travessias sem qualquer aviso prévio.
Estávamos na iminência de melhorar de facto a qualidade dos nossos transportes fluviais e, em mais um ato de gestão medíocre, vemos a manutenção de um serviço de pouca qualidade, de fiabilidade questionável e de futuro duvidoso, considerando o estado dos equipamentos e a dificuldade de garantir tripulações.
Hoje, quando cada vez é mais consensual a necessidade de melhoria da oferta de serviços de transportes coletivos que permitam diminuir a utilização de veículo próprio e assim contribuir para a diminuição do impacto ambiental das deslocações diárias, e depois da assunção de um bom princípio de substituir as atuais embarcações por veículos mais amigos do ambiente, o Estado volta a falhar-nos.
Neste momento, em que o preço dos combustíveis é elevado e o preço das portagens escala todos os anos, aliado ao aumento dos preços dos bens de primeira necessidade e das prestações das casas por força do aumento das taxas de juro, uma decisão inqualificável põe em causa o processo de renovação de uma das poucas alternativas de transporte financeiramente comportáveis para os utilizadores.
Hoje, como em muitos outros temas, os cidadãos da Margem Sul são desrespeitados e tratados como cidadãos de segunda e as trapalhadas de quem nos governa vaticinam que continuarão a ver navios.