ENTRE IDEIAS E REALIDADE.
Na capa estão duas imagens – um painel de azulejos sobre a primeira constituinte portuguesa (4 de julho de 1820), com Manuel Fernandes Tomás a discursar (como acontece na sala de sessões do Parlamento) e uma Alegoria à Primeira Revolução Liberal do Porto, de 24 de agosto de 1820. As imagens completam-se e correspondem à apresentação dos dois ensaios que constituem o presente volume – de facto, há um confronto na estabilização do constitucionalismo português entre as ideias e a realidade, ente os princípios e as contradições sociais.
Os dois ensaios, correspondendo a dois períodos bem diferentes, completam-se e revelam um país inseguro e heterogéneo. No primeiro caso, falamos de 1823-1824, da Vilafrancada e da Abrilada, movimentos que interromperam a vigência fugaz da Constituição de 1822 e que abriram caminho à restauração absolutista e à guerra civil (1828-1834). No segundo caso, fala-se do que é designado como “ressurreição e morte do radicalismo” (1864-1870), depois de pelo menos duas guerras civis, e do facto de com a “Regeneração” de 1851 e o “Ato Adicional” (1852) ter sido enterrado o machado de guerra pelas forças políticas mais significativas, através de uma solução constitucional muito próxima da Constituição de 1838, que podia contentar a direita e a esquerda liberais, no dealbar do rotativismo…
QUE ALTERNÂNCIA?
A tentação fusionista e a ausência de uma verdadeira alternância política formal geraria esse movimento algo especial que teria o condão de pôr termo a uma solução à qual faltava um espaço para a respiração e para a afirmação dos verdadeiros descontentes. Se no primeiro ensaio, assistimos à tentativa dos radicais instalados ainda no poder reforçarem posições contra a crescente influência dos partidários do “Ancien Régime” absolutista, no segundo já os radicais perderam alguma força real e procuram apenas recuperar espaço de manobra.
Perante estes dois quadros, e com uma diferença de quase quarenta anos, encontramos o mesmo País e a mesma procura de instituições civilizadas ou aptas as representar um povo insatisfeito e bem diferenciado entre “a cidade e as serras”, entre a urbanização e o campo.
Na Vilafrancada o rei moderou os ímpetos de D. Miguel e prometeu um “justo meio”. Nomeou uma Junta Preparatória presidida por Palmela para redigir uma Carta Constitucional que prometera no lugar da Constituição, segundo uma transação que permitisse aos dois lados renunciarem a algumas pretensões. Houve uma repressão branda. Mas os absolutistas criticavam a tolerância com jacobinos e pedreiros e temiam que a Carta “administrada por gente como Palmela e Subserra, servisse de passagem para o radicalismo”, em vez de ser “o melhor remédio para ele”. Assim, a ideia de Carta foi posta na gaveta e Palmela passou a pensar numa “compilação das normas de direito público português compatíveis com o sistema representativo”.
O ambiente geral externo e interno não permitiu esse caminho. E o partido miguelista acalmou. Mas o que surgiu foi um “absolutismo mitigado, menos despótico do que arbitrário e, na essência, moribundo”. E como a obra jacobina ficara no limbo, os partidários de D. Miguel temiam que os moderados pudessem permitir a sua sobrevivência. E ainda por cima, havia a esperança vã de evitar a perda definitiva do Brasil. Aliás, essa parte relativa ao Brasil merece leitura atenta, já que desmonta muitas ideias nessa matéria…
FICAR EM CASA…
É verdade que D. Pedro rompera com Portugal por não aceitar a posição dos constituintes, mas tudo avançara muito já, o acordo era impossível, uma solução negociada não podia funcionar e as potências europeias consideravam que a independência brasileira com D. Pedro estava desenhada nos astros, mesmo que o seu reconhecimento não fosse imediato. Acrescia que o exército não estava disposto a fazer uma guerra para recuperar o Brasil. Preferia ficar em casa. E assim, no momento próprio, D. Miguel deu o golpe definitivo (aproveitando ventos favoráveis) com a Abrilada…
Muita água correu sob as pontes, desde o assassinato do marquês de Loulé até à misteriosa morte do próprio rei… Apesar de Herculano sempre ter alertado os regeneradores para nunca perderem a ideia de alternativa, o certo é que as circunstâncias e a oposição a Sá da Bandeira levaram a uma “fusão”, composta por Fontes, Sampaio, Martens Ferrão, Loulé, Braamcamp e Mendes Leal. Seria uma “Regeneração” pura, baseada nos melhoramentos. E a “fusão” tornou-se governo, mas não pediu dissolução do Parlamento. Rodrigo da Fonseca disse que preferia comprar deputados feitos a fazê-los. E assim viveu dois anos e três meses. Mas a opinião radical manifestou descontentamento forte pelo oportunismo campeante.
Os ventos não corriam de feição, já em 1866, e a suposta concórdia universal confrontou-se com sinais crescentes de crise social, financeira e económica – apesar de medidas importantes como o novo Código Civil e a abolição da pena de morte, que já vinham detrás. As leis contra a mendicidade de Martens Ferrão suscitaram debates acesos, o défice e a dívida pública descarrilavam, a austeridade veio, a supressão de quatro distritos e medidas administrativas mal recebidas geraram todas as condições para o renascimento de uma oposição radical – condições que o anúncio de um eventual novo imposto de consumo veio a reforçar. Os comícios multiplicavam-se, designados como meetings, o ambiente era de descontentamento generalizado. O Centro da Travessa da Queimada (criado pelo conde de Peniche) unira-se à União Patriótica do Porto e propunha um ambicioso programa sobretudo em matéria fiscal. A agravar tudo, o ano agrícola de 1867 foi desastroso, nos cereais, nas vindimas, nos olivais e pomares. Os preços e o desemprego subiram em flecha. O bode expiatório são as medidas do governo.
O copo transvasava e o clima é de insurreição. A Janeirinha eclodiu no início de 1868, num violento levantamento popular inaudito. Nasce uma maioria capitaneada por António José de Ávila – “mistura improvável de ‘conservadores endurecidos’, ‘progressistas convictos’ e ‘quase republicanos’, incapaz de unir e permanecer unida”.
E não houve milagres. A situação continuou difícil, com a fome e o desemprego a crescerem – o que culminaria na queda de Ávila em julho. Loulé foi encarregado de formar governo, mas houve uma forte reação contrária, motivada pelos radicais. O Bispo de Viseu, D. António Alves Martins, foi então convidado.
A Janeirinha dos políticos vencia – com Viseu, Sá da Bandeira e Latino Coelho – e chegava ao governo. O programa respeitava a simplificação dos serviços, a luta contra a corrupção e a descentralização. Mas depressa nasceu um descontentamento larvar, a partir dos funcionários atingidos pelas reduções, agravado pela crise financeira e pelo insucesso nas negociações com os mercados. O ministério cairia, mas houve manifestações para a sua manutenção, o que obrigou o rei D. Luís a convidar Saldanha, embaixador em Roma, que no caminho desistiu do encargo.
O rei dissolveu a Câmara, mas os governamentais (Viseu e Sá) foram fugazmente reconduzidos. As dificuldades avolumaram-se e Loulé suceder-lhes-ia. “A derrota de Sá e Viseu e o regresso dos históricos mostravam que as receitas do radicalismo para a crise nacional não se podiam aplicar ou eram vãs, mas também não existia uma alternativa conservadora”… E o ocaso dos radicalismos corresponderia à tentativa desastrada do Duque de Saldanha de fazer ainda vencer um programa de rutura. Não conseguiria. Porque já se estava num outro tempo…