Presenciamos actualmente o início de uma nova legislatura e o Partido Socialista não perdeu tempo em apresentar projectos de lei acerca da eutanásia. Num período peculiar, em que vivemos uma guerra na Europa, uma seca crítica em Portugal e uma inflação preocupante, o Partido Socialista continua, por pura cegueira ideológica, a dar prioridade ao tema da “morte medicamente assistida”.

Ora, mas este tema é mais complexo do que consta apenas da sua definição, podendo a eutanásia ser analisada a partir de quatro perspectivas: numa perspectiva jurídica; numa perspectiva de deontologia médica; numa perspectiva política; e, por último, numa perspectiva filosófica.

A eutanásia, do ponto de vista jurídico, é um atentado grave à Constituição da República Portuguesa e, para que juridicamente a lei da eutanásia possa ser aprovada, seria necessária uma revisão e alteração à Constituição. Caso contrário, a lei fundamental portuguesa nada mais seria senão um conjunto de normas despidas de autoridade e passíveis de violação a qualquer momento. Karl Loewenstein, filósofo e político alemão, desenvolveu uma tese que visava classificar os diversos tipos de constituições ontologicamente. O autor apresenta-nos, então, as três classificações possíveis segundo a sua tese, afirmando que a constituição pode ser normativa, nominal ou semântica. Na primeira, «a Constituição é como um fato que serve e é efectivamente usado». Na segunda, «a constituição é como um fato que por enquanto está no armário, para ser usado quando o corpo político nacional crescer». E, finalmente, na terceira, «o fato não é honesto, mas apenas um disfarce ou um vestido de fantasia”». Em Portugal, onde existe um enorme desfasamento entre a realidade constitucional e o texto constitucional, podemos classificar a lei fundamental portuguesa como uma Constituição nominal. Daí que, caso venha a ser aprovada a lei da eutanásia, Portugal vai reforçar a sua imagem de democracia aparente, onde é frequente o desfasamento entre a realidade constitucional e o texto constitucional.

Do ponto de vista da deontologia médica, a eutanásia representa a ausência de carácter, de honra, e de profissionalismo por parte de um médico. Segundo o artigo 5º do código deontológico da Ordem dos Médicos: «O médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo sempre com correcção e delicadeza, no intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano

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Do ponto de vista político, antes sequer de atingirmos o estágio para debater este tão delicado tema, devemos primeiro olhar para o nosso deteriorado Sistema Nacional de Saúde, canalizar mais investimento público para a saúde, incentivar as parcerias público-privadas nas gestões hospitalares – as quais são belos exemplos de como os serviços de saúde podem ser eficazes com menos Estado –, investir em condições materiais para suprir as indignas condições de trabalho dos profissionais de saúde, aplicar mais capital no desenvolvimento dos cuidados intensivos, remunerar justamente os profissionais de saúde –  e só depois de estas tão relevantes etapas estarem verificadas, avançar, sim, para um debate tão sério e delicado como o da eutanásia. O que aconteceu no ano transacto no Parlamento foi um autêntico descrédito para com a democracia. O diploma da eutanásia foi aprovado na generalidade, ignorando o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Enfermeiros, a Ordem dos Advogados, os bastonários da Ordem dos Médicos, a Associação Nacional de Cuidados Paliativos, os grupos privados de saúde. Ainda aguardaram a alteração dos juízes do Tribunal Constitucional antes de levarem o texto ao parlamento, esperaram pela dissolução da Assembleia da República, e, por último mas não menos importante, ignoraram uma petição pública assinada por mais de 76 mil pessoas, que visava que fosse levado a referendo o tema da eutanásia.

Por último, de um ponto de vista filosófico, a eutanásia é, precisamente, o oposto do designado avanço civilizacional. O direito à vida é indisponível. Ninguém pode ter o direito de introduzir na Constituição de um Estado o direito a matar. Os fins primordiais de um Estado assentam na justiça, na segurança e no bem-estar económico e social. Caso não os assegure, não passa de um Estado falhado. Com base nestes três princípios, o Estado, ao estar a dar ferramentas aos seus cidadãos para anteciparem a morte, está a incumprir o seu dever de garantir a segurança dos cidadãos e o consequente bem-estar social. A vida humana é inviolável e merece ser valorizada.

Um dos argumentos utilizados por pessoas que são a favor da eutanásia é o facto de o doente estar num sofrimento tal que a única maneira de mantermos a dignidade do mesmo é terminando com a sua vida. Ora, um dos medicamentos utilizados frequentemente nos cuidados paliativos é a morfina, esta diminui o sofrimento da pessoa em vida pois faz com que o paciente perca a sensibilidade à dor. Ainda assim, como é possível calcularmos o sofrimento da pessoa humana? Não existe, ainda, qualquer tipo de aparelho com essas funcionalidades, o que torna o sofrimento uma questão subjectiva, vaga, e sem relevância alguma para este tema. A vida é sempre digna. Não existem momentos que a tornem menos digna, pois a dignidade da pessoa humana é algo inerente à própria qualidade de se ser humano. Só existem direitos e liberdades porque existe vida, a vida está intrinsecamente ligada à dignidade da pessoa humana, e é essa mesma dignidade o limite à liberdade individual de cada sujeito. Com a legalização da eutanásia, não estamos a observar uma eliminação do sofrimento do paciente, estamos a observar a eliminação de uma vida. A morte não traz dignidade à pessoa.

Quando olhamos para um ser humano, não podemos vê-lo apenas fisicamente. Devemos olhar para aquele ser humano como um todo, composto de vícios e virtudes, de qualidades e defeitos, de corpo e alma. A vida tem de ser vivida de um modo pleno, e todas as nossas acções devem ser orientadas por princípios fortemente humanistas. O Samaritanus bonus, uma carta sobre o cuidado das pessoas nas fases críticas e terminais da vida, reitera a importância do princípio da dignidade da pessoa humana e da vida, dizendo-nos que «reconhecer a impossibilidade de curar, na perspectiva próxima da morte, não significa, todavia, o fim do agir médico e dos enfermeiros. Exercitar a responsabilidade para com a pessoa doente significa assegurar-lhe o cuidado até o fim: “curar se possível, cuidar sempre”. Esta intenção de cuidar sempre do doente oferece o critério para avaliar as diversas ações a se empreender na situação de doença “incurável”: incurável, com efeito, não é jamais sinónimo de “incuidável”».

Não se trata de impor a vida a alguém. Aliás, se um paciente se encontrar num estado psicológico que o impeça de discernir por ele mesmo e, anteriormente, quando capaz, não recorreu a nenhum instituto como, por exemplo, o testamento vital, ficará sempre sujeito à arbitrariedade do seu/sua cônjuge, ascendentes ou descendentes, para decidirem o seu destino. E, nesse caso, se a pessoa for a favor da eutanásia, estará a impor ao paciente a morte. Logo, não se trata de impor a vida ou a morte a alguém, estamos perante uma questão que não é uma ciência exacta. Trata-se de abordarmos a dignidade da pessoa humana de acordo com a natureza das coisas, dando o devido valor à vida e limitando a liberdade individual naturalmente. E, ainda assim, entre a vida e a morte, nunca hesitaria em escolher a vida.