As boas histórias podem-se reproduzir de forma fractal, assim como elementos e detalhes da nossa imaginação e do nosso conhecimento. Se destilarmos as palavras escritas em qualquer bom texto, acabamos por recuar, vamos sempre parar a um conjunto de histórias e lugares reduzidos. Um desses cenários é o jardim, é o maior e o melhor símbolo do paraíso que existe na terra e no nosso pensamento, também local onde tudo o que diz respeito à natureza humana terá começado.

No Jardim do Éden, haveria muitas árvores de fruta. A única da qual temos mesmo a certeza que lá existiria é a figueira, pois Adão e Eva tapam-se com folhas de figueira quando ganham a consciência de que estão nus. Esta consciência pode ser interpretada como o momento em que passam a reconhecer a sua própria mortalidade, característica que nos diferencia. Terem que sair do Jardim do Éden pode ser interpretado como o início da difícil tarefa de cultivar a terra.

A história da agricultura demonstra, tanto através da literatura como em acontecimentos históricos, que, sempre que existiram avanços agrícolas significativos, estes deram origem a avanços ou mudanças civilizacionais, ainda mais marcantes. O próprio livro do Génesis, em determinada altura, foi escrito em folhas de papiro, produto agroflorestal ou também em peles de caprino, produto agropecuário. A agricultura pode ser vista como uma constante tentativa de regresso ao Jardim do Éden e a religião por sua vez, faz repetidas referências a temas agrícolas.

Qualquer grande praça tem normalmente uma fonte. Os claustros dos mosteiros, os jardins fechados das antigas casas árabes, ou mesmo as aldeias dentro de muralhas são igualmente vestígios desses mesmos paraísos. A palavra jardim significa paraíso, e a palavra Éden, bem regado. A história do Jardim do Éden ensina-nos sobre os inícios dos tempos e sobre o início da prática da agricultura, mas também pode demonstrar muito mais. Neste caso a ficção literária está tão rica que se torna mais significativa do que algumas realidades.

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As histórias bíblicas e as histórias mitológicas estão carregadas de símbolos, infinitamente interpretativos e reveladores. Na história da criação do mundo, simples, mas profundíssima e de poucas palavras, primeiro existiu a luz. A luz que separou o dia das trevas. Depois a água. Por fim a terra. Depois tudo o que lá rastejava, caminhava, nadava ou voava, a erva e as árvores de fruta com semente. Ao ver isto, Deus ficou feliz e descansou. Criou depois o homem, à sua imagem. Coloca-o no num jardim murado, paraíso seguro onde tudo era abundante, mas onde existia também, já lá dentro, uma serpente. Havia também uma fonte e quatro rios, no meio, a árvore da vida e da sabedoria. Neste jardim murado, onde o céu e a terra se encontravam, Deus introduziu então o primeiro homem, chamado Adão. Depois, a partir de Adão faz a primeira mulher, Eva.

A imagem do fruto proibido presente no Jardim do Éden que conhecemos é de uma maçã. Inúmeros livros, contos e fábulas, retratam-na. Magnificamente representada em pinturas. Talvez por esta história ter sofrido tantas traduções e mesmo antes de estar escrita terá sido transmitida por via oral também durante longos períodos de tempo, não ficou bem claro de que fruta se tratava. A história não faz referência concreta à maçã. Pensamos que era uma maçã pela sua descrição, pois sabemos que foi tirada de uma árvore e consumida, era vistosa e apetitosa.

A maçã, fruta comida por Adão e Eva, ficou desde aí muitas vezes associada à magia, e pelo seu aspeto redondo representa de uma forma geral, os desejos terrestres. A figueira, usada para se taparem, é símbolo de abundância e fertilidade, mas tem uma dualidade, pode ser também símbolo negativo, uma árvore morta ou estéril. Em todas as culturas teve importância, na Babilónia, no Egipto, em Israel, na Grécia e em todo o Oriente Mediterrânico e Mediterrâneo em geral.

Para além destas duas espécies, e se quisermos ver esta história de um ponto de vista mais agronómico ou botânico do que literário, outras espécies poderiam ter estado presentes no jardim do Éden. A Videira, espécie considerada sagrada que nos dá o vinho, a bebida dos deuses. A Romãzeira, associada à sensualidade. E possivelmente também a Palmeira “Datileira”, a Alfarrobeira e o Marmeleiro. A amendoeira imagino poder estar presente e em plena floração, para dar cor. São estas as espécies que encontramos originalmente no Oriente Mediterrânico, na Mesopotâmia, no Egipto, na Grécia Antiga e já em tempos romanos. Sempre muito mencionadas nas histórias bíblicas.

A consciência da nossa fragilidade e o início da agricultura começam em simultâneo. O castigo que resultou do ato de se ter comido o fruto proibido foi a expulsão de Adão e Eva do paraíso. Uma vez fora destes muros tiveram de enfrentar, tal como toda a humanidade desde então, a dureza de ter que trabalhar e produzir para comer e viver. No mundo fora dos muros, os homens teriam que se dedicar à agricultura e à pesca, eventualmente à caça, pois se não o fizessem morreriam à fome. A humanidade ficou sujeita ao frio, ao calor, ao vento, à seca, ao granizo, às doenças e aos insetos, fenómenos exemplificados mais tarde, na história do Antigo Egito e das sete pragas. Numa nota curiosa quando cai o granizo sobre o Egito, este destrói tudo onde toca. Só os trigos escapam por ainda se encontrarem num estado jovem. Os trigos são, no entanto, posteriormente devorados pela última praga, os gafanhotos. Aqui vê-se bem a potencial violência da natureza.

A importância da caça, ou das espécies de caça também fazem parte da história e das histórias. Num episódio também bíblico, Moisés consegue alimentar o seu povo, cansado e com fome, devido a uma chuva de perdizes que ocorre na zona onde estão acampados. Saindo das histórias e olhando-se para a arqueologia, foram encontradas em 1868, na propriedade do Marques de Santola, no Norte de Espanha, as famosas pinturas de Altamira. No interior de uma gruta escura e rochosa, encontram-se umas maravilhosas e coloridas pinturas, obras de arte, pintadas em tons de encarnado, castanho e negro. Bisontes, touros e veados preenchem as paredes desta caverna. Trata-se de uma obra de arte que remonta à última idade do gelo com perto de dezassete mil anos. O ser humano, caçava e alimentava-se de veados e bisontes, estes tinham de tal maneira importância que foram inspiração, tema artístico, imortalizado na rocha das grutas de Altamira.

A mudança da prática da caça e recoleção para a agricultura não foi uma invenção, foi sim uma transição. Deve-se à combinação das pressões exercidas pelas longas secas, o aquecimento da região e eventualmente também alguns efeitos da desflorestação. Conseguimos imaginar estes homens e mulheres do passado a olhar para o céu, totalmente azul, dia após dia, a esperar por uma chuva que nunca mais chegava, não havia previsões meteorológicas nem telemóveis. Esta transição terá acontecido na zona do oriente próximo, zona também onde grande parte das histórias bíblicas ocorreram. Os seres humanos começaram a guardar as sementes de plantas selvagens que comiam, pois sabiam que estas davam origem a novas plantas. Evitavam assim as longas caminhadas habituais e cada vez mais longas em busca dos alimentos.

As primeiras aldeias agrícolas conhecidas datam de seis a nove mil anos antes de Cristo e algumas estão datadas até onze mil anos antes de Cristo. Eram compostas por casas retangulares, construídas em pedra, argila e barro. Esta arquitetura e construção folclórica e anónima foi duradoura e cativa o nosso olhar ainda hoje. Cultivava-se trigo, centeio e lentilhas e pastoreavam-se ovelhas e cabras. Mais tarde, nas zonas costeiras do Mediterrâneo, os agricultores dividiam o seu tempo entre a agricultura e a pesca, a pesca no verão quando o mar estava mais calmo.

As histórias e a história, a mitologia e a arqueologia ensinam-nos quais os alimentos e hábitos verdadeiramente antigos e verdadeiramente mediterrânicos, mostram-nos também como era a agricultura. Sabemos assim que o mel e os frutos secos, incluindo a bolota e a castanha foram importantes. Nas hortaliças encontramos mencionados o rabanete e a alface entre outras. Nas leguminosas o grão e as lentilhas. Lentilhas, prato com que Esaú troca o seu direito de primogenitura com seu irmão gémeo mais novo, Jacob.

Nas frutas a tâmara, a uva, a romã, o figo, o marmeleiro e a maçã. À mesa usamos talheres, invenção Mesopotâmica, e nas refeições nela servidas está sempre o pão, o azeite, a carne de borrego ou cabrito e o peixe. As aves e os ovos também fazem parte da nossa dieta pois os egípcios bem cedo repararam na utilidade da galinha, ave que era capaz de pôr ovos todo o ano. Os bolos e as bolachas sem fermento, untadas com azeite e perfumadas com ervas. Nas ervas, a hortelã para sopas e chás bem como outras aromáticas que cresciam nas ribeiras ou em serras. As principais bebidas eram o vinho, líquido com pelo menos seis milénios e a cerveja.

Uma outra particularidade da alimentação antiga e mediterrânica, muitas vezes esquecida, era a sua sazonalidade. Nem sempre se comia tudo nas proporções e tomas diárias recomendadas como é hoje, a alimentação estava sujeita a mudanças, aleatoriedade e por vezes jejum. A religião não pode ser separada da antropologia e a antropologia penso que não se pode separar da agricultura. Voltando ao antigo livro do Génesis, Abel foi pastor, Caim seareiro, Esaú caçador e Jacob bom cozinheiro. As boas histórias ensinam-nos o que fomos e o que somos. Os nossos hábitos alimentares nunca podem ser isolados dos nossos hábitos agrícolas e os nossos hábitos agrícolas são moldados pelo clima e pelo terreno que depois, por sua vez, encontramos representados na religião.

Nada nos pode dar tanta paz como estarmos num jardim, se possível murado, onde existem árvores com fruta apetitosa e madura, se tiver uma fonte no seu centro será então um jardim perfeito. Qualquer festejo inclui família, convidados e serve-se normalmente um borrego, um cabrito ou um vitelo. Abraão e Sarai recebem o próprio Deus na sua tenda e oferecem um vitelo, leite, pão e manteiga.

Se hoje sabe bem um peixe grelhado numa esplanada a olhar para o mar no verão ou uma sopa de grão ou lentilhas, à lareira no inverno, isto talvez seja porque os homens eram pescadores no verão e agricultores no inverno. O derradeiro teste de um azeite talvez seja o seu casamento com o peixe fresco, a expressão máxima dos frutos da terra e frutos do mar, combinação milenar. Se uma pequena maçã de uma variedade antiga ou uma romã apanhada num quintal ou horta nos sabe tão bem e ajuda na digestão, pode dever-se a estar tão harmoniosamente ligada ao nosso sistema digestivo, há muitos milhares de anos. Se o vinho tinto sabe bem no inverno isto talvez seja porque é depois das vindimas, da fermentação e de algum frio que ele fica pronto para se beber. A cerveja refresca-nos talvez por estar pronta a meio do quente verão, pois a colheitas eram em meados de maio, hoje talvez um pouco mais tarde. Um rebanho ou manada fica bem em qualquer pintura ou obra de arte, seja ela nas paredes de uma gruta em Altamira, feita pelo homem pré-histórico, ou sobre uma tela com tintas de óleo, pintada por Jean-François Millet, emoldurada e exposta nas paredes do museu D´Orsey.