Recanati, província de Macerata, uma pequena comuna perto da costa Adriática. Início de Oitocentos. Um jovem de prodigiosa precocidade, primogénito de um conde praticamente arruinado, sacode o torpor de um palazzo bafiento. Aos dez anos, escreve uns libretti puerilli com uma prolificidade espantosa. Entre os treze e os catorze, passa a residir na vastíssima biblioteca paterna, onde vinte mil lombadas poentas o circunfundem. Obsessiva e vorazmente, lê, lê e lê. Pouco tempo depois já domina, além de italiano e latim, grego, hebraico, inglês, francês e espanhol. Sete anos torturando o seu corpo, sete anos sujeitando-se a um esforço “louco e desesperadíssimo”, o menino que em tempos entrara na biblioteca paterna sai de lá precocemente envelhecido. Embora polímata e autodidata, tem agora uma escoliose deformadora e ambos os olhos deslocados da órbita, frágeis e protuberantes.

Em 1815, então com dezassete anos e a meio da sua seclusão na biblioteca paterna, chega o seu momento damasceno. Numa metamorfose a que viria a chamar a sua “conversão literária”, transita da erudição ao belo. Nesse mesmo ano, abalança-se a uma obra que revela invulgar instrução e inteligência, um Ensaio sobre os Erros Populares dos Antigos. Il mondo è pieno di errori, escreve, e prima cura dell’uomo deve essere quela ti conescere il vero. O seu pai, que então lhe ideava uma carreira em teologia, acalentando esperanças de que ele se tornasse um paladino do Cristianismo racionalista e triunfante, está maravilhado. Mas, lendo e traduzindo Homero, Hesíodo e Píndaro, o então adolescente descobre-se poeta. E nada, nem o desagrado da própria família, o desviaria do seu destino.

Falo, é claro, de Giacomo Leopardi, autor dos Cantos e o maior poeta italiano desde Dante.

Poeta da ilusão e dor universais, Leopardi cantou, como ninguém antes dele se atrevera, a inelutabilidade da miséria humana e o seu vazio existencial. Desencantado, intransigentemente lúcido, recusou todos os paliativos e refrigérios do seu tempo, divisando ao fim de tudo a vanidade dos esforços humanos: “(…) Amargo e tédio/ A vida, e nada mais; e lama é o mundo. /(…) Enfim despreza-/ Te, a natureza, o agudo/ Poder que, oculto, contra nós impera, /E a infinita vanidade em tudo”.

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Tudo era ilusão: a esperança cristã não mais do que o optimismo laico, progressista e cientificista do seu século. Mera soberba antropocêntrica, mitos e certezas que nos permitiam fugir ao silêncio do grande Nada, à frialdade do Não-Ser.

Mas Leopardi compreendia, melhor do que ninguém, os perigos de um mundo inteiramente desvelado. A própria História era um inventário de exemplos onde sucessivas ilusões, voluntárias ou fruto de um desconhecimento benigno, abrasavam e impeliam o homem em diante. Numa entrada do seu Zibaldone di pensieri, diário íntimo, esta alusiva intuição leopardiana é brilhantemente captada: “Tudo o que é fixo e determinado está muito mais longe de nos contentar do que aquilo que, por sua própria incerteza, nunca nos pode contentar”.

O seu Canto XII, L’Infinito, além de figurar entre os poemas mais belos de qualquer língua, é uma comovente expressão disso mesmo.  No então Colle di Tabor em Recanati, Leopardi, sentado num morro defronte a um horizonte, escreve os versos imortais: “Sempre amei este morro tão deserto, / E esta sabe, que por todo lado/ Do último horizonte o olhar me veda. / Mas sentando e mirando (…) / Eu no pensar me finjo (…) / e me revém o eterno (…) / E assim eu nesta / Imensidade afogo o pensamento: Meu naufragar é doce neste mar”.

Incapaz de ver o horizonte, Leopardi é livre para idear o Infinito e, portanto, para escrever poesia e ceder à ilusão. A argúcia desta observação talvez explique o facto de Leopardi ter sido o poeta mais lido pelas tropas italianas nas trincheiras da 1.ª Guerra Mundial, em tempos de acerbado patriotismo.

Mas nem por isso Leopardi, escafandrista do espírito humano e pessimista cósmico de honestidade brutal, misantropa e extremada, foi anti-humano. Se nos mostrou o Homem na sua ontológica fragilidade, ridicularizando o fosso intransponível entre as suas pretensões e a sua pequenez, também nos tornou dignos de ser amados. Se Dante trasumanou o ser humano, impelindo-o além dele próprio até à candida rosa do Empíreo, Leopardi (re)humanizou-o, devolvendo-nos à nossa natural dimensão e enraizando-nos nas trevas tal-qual Dante nos fixara na luz. “Ninguém, no nosso tempo, confrontou a miséria da nossa existência tão meticulosa e exaustivamente quanto Leopardi”, escreveu Schopenhaeur.

Em tempos frenéticos, mas em que a instantaneidade não abafa o tédio, a dor e a perda de sentido, por que devemos ler Leopardi? Porque entre a dor e o nada há o Homem, na sua comovente e louca dignidade. Leopardi, esse distante jovem corcovado e asmático, sabia-o. E, falando de si, imortalizou-nos.

1 Todas as traduções dos versos originais são da autoria de Álvaro Antunes e podem ser encontradas em “Cantos”, de Giacomo Leopardi, edição bilingue publicada pela Editora 34. Os excertos do Zibaldone di pensieri podem ser encontrados em edições italianas ou na tradução inglesa de Michael Caesar e Franco D’Intino.
2 Saggio sopra gli errori popolari degli antichi.
3 “O mundo está cheio de erros, e a primeira preocupação do homem deve ser conhecer a verdade”.
4 Nascido há 226 anos, neste mesmo dia.
5 Expressão algo anacrónica, uma vez que a Itália moderna apenas surgiria em 1861.6 “Amaro e noia/ La vira, altro mai nulla; e fango è il mondo. (…) Omai disprezza/ Te, la natura, il brutto/ Poter che, ascoso, a comum danno impera,/ E l’infinita vanità del tutto.”, Canto XXVIII, A Se Stesso.
7 E do nosso (ainda).
8 “Tutto ciò che è fisso e determinato è molto più lontano dal contentarci di quello che per la sua stessa incertezza non può mai contentarci”.
9 Hoje Colle dell’Infinito, em homenagem ao poema.
10 In “Cantos”, Giacomo Leopardi, Editora 34.
11 Sem esquecer os poemas eminentemente patrióticos da sua juventude, como All’Italia ou Sopra Il
Monumento Di Dante Che Si Preparava In Firenze.