A confusão que por vezes se estabelece entre milhões e milhares de milhões em artigos de jornais, em comentários televisivos e nas redes sociais deve-se ao facto de, para muitas pessoas, qualquer número acima de um milhão cair numa categoria de quantidades transcendentes, impossíveis de processar de forma automática. Este artigo tenta clarificar ordens de grandeza de alguns números, apresentando-os de forma crescente, em euros.
- 0,5 milhões – Também conhecido por quinhentos mil, foi o montante negociado pelo governo e pela TAP com a administradora Alexandra Reis e que causou todo o imbróglio das últimas semanas. Como referência, chamemos a este valor de meio milhão de euros um IAR (Indemnização a Alexandra Reis). Servirá de termo de comparação ao longo do artigo, numa apropriação cultural de uma intervenção do Deputado Carlos Guimarães Pinto na Assembleia da República. Apesar de ser o mais pequeno desta lista, é dos números apresentados o que gerou maiores indignações.
- 4 milhões (8 IAR) – foi o valor pelo qual foi anunciada a venda da casa onde José Sócrates residiu, no 16º arrondissement, em Paris. Corresponde a cerca de 70 anos do salário de um primeiro-ministro. Apesar de ser um valor inacessível para a maioria dos portugueses, este magnifico apartamento decorado com gosto e sofisticação estaria facilmente ao alcance da ex-CEO da TAP. Para o pagar, é possível que Christine Ourmières-Widener nem precisasse recorrer a crédito ou quebrar o porquinho-mealheiro das poupanças acumuladas. A indemnização que os contribuintes lhe atribuirão pelo seu despedimento “com justa causa” deverá ser suficiente.
- 26 milhões (52 IAR) – É o ajuste nas contas da TAP, em 2022, pela utilização de prejuízos fiscais reportáveis, um movimento contabilístico de antecipação de resultados que não foram obtidos nas operações. Se a este valor adicionarmos “várias dezenas de milhões de euros” conseguidos com os cortes salariais e despedimentos, ficaremos próximos do lucro total declarado, que foi de 65,6 milhões. Antecipações de resultados, despedimentos e cortes salariais, são assim as principais componentes de um “passo sólido nas perspetivas para o futuro da empresa e para o país“.
- 33,5 milhões (67 IAR) – Valor próximo do custo do Túnel do Marquês em Lisboa, a preços atuais, incluindo apenas a construção da infraestrutura. As indemnizações pagas ao consórcio construtor, “em larga medida como forma de compensação dos atrasos induzidos pela providência cautelar interposta por José Sá Fernandes, actual vereador do BE na equipa de António Costa (2008)”, fez aumentar esse custo em mais 36 IAR (44 IAR a preços atuais).
Na mesma ordem de grandeza estão os lucros do Pingo Doce em 2022, que foram 33 milhões de euros. Era também este o Orçamento Inicial da Casa da Música, no Porto, mas o custo final foi de 111,2 milhões de euros (222 IAR)
- 55 milhões (110 IAR) – Montante que o governo português pagou a David Neeleman, transformando-o no único empresário na área da aviação a ganhar com a pandemia. Para quem se indignou muito com este valor, 110 vezes superior à indemnização recebida por Alexandra Reis, recorde-se que representa apenas 1,7% dos custos do festim que se seguiu.
- 165 milhões (330 IAR) – O TGV, que não saiu do papel, já custou 120 milhões em estudos e projetos (240 IAR), mais 33 milhões para a RAVE (66 IAR) a que se podem adicionar 12,2 milhões de indemnizações de processos que estavam já concluídos em 2015. A valores de hoje aproxima-se de 380 IAR. Em 2022, lia-se no Observador que o “Estado pode ter de pagar 220 milhões de euros por causa do projeto de José Sócrates para o TGV”. São só mais 440 IAR, “que correspondem aos 149,6 milhões que o Estado foi condenado a pagar em 2016, acrescidos de juros”.
- 203 milhões (406 IAR) – Os números vão crescendo e atinge-se agora o montante que, segundo o Tribunal de Contas, representa as poupanças do Estado com as Parcerias Público-Privadas no sector da Saúde. O que nos vale é que já não volta a acontecer. Daqui em diante pagaremos mais milhões por menos saúde, mas jamais alguém poderá voltar a incomodar a ex-ministra Marta Temido, proclamando que “três hospitais PPP ocupam pódio em Excelência Clínica”, como afirmava a Entidade Reguladora da Saúde.Refira-se que estas poupanças foram sol de pouca dura. Tudo o que se economizou com as PPP da saúde já não é suficiente para suportar os custos da nacionalização da Efacec, que em fevereiro de 2023 já somavam 408 IAR. E por cada mês que passa, adicionamos 20 IAR.
- 532 milhões (1064 IAR) – Ultrapassámos agora a barreira dos 500 milhões de euros, valor que serviria para indemnizar 1000 Alexandras Reis, mas que será aplicado na construção do Hospital de Todos os Santos, também conhecido por Hospital Oriental de Lisboa. Isto é uma previsão de preço antes de se iniciar a obra. As previsões anteriores eram bem diferentes. Em 2007, quando a obra foi anunciada, estimava-se um custo de 150 milhões de euros. Cada ano que passou, a obra deslizou 50 IAR, sem nunca ter saído do papel. Em 2007 também se estimava que o hospital seria inaugurado em 2012, mas agora já se admite que será em 2027. Estamos apenas com 15 anos de atraso, cerca de 1,7% do tempo que Portugal tem de vida como nação independente. Praticamente nada.
- 760 milhões (1520 IAR) – Foi quanto ganhou o Estado Alemão ao sair da Lufthansa, passada a pandemia. Vendeu os 20% do capital que lhe tinham custado 306 milhões de euros, em 2020, por 1070 milhões de euros em 2022. Teve lucro, algo que é indesejável, como qualquer estudante do Centro de Estudos Sociais bem sabe. Felizmente, temos um Estado pouco ganancioso que prefere os prejuízos.
- 3,2 mil milhões (6400 IAR) – A TAP tinha, em finais de 2021, cerca de 6600 trabalhadores. O montante que Pedro Nuno Santos enterrou na companhia seria suficiente para pagar a todos os trabalhadores uma indemnização equivalente à que foi acordada com Alexandra Reis. Foram 3200 milhões que demonstraram à evidência a visão estratégica e a capacidade de gestão de Pedro Nuno, o homem que percebe de aviação. Os 3,2 mil milhões permitiriam também indemnizar uma Alexandra Reis todos os dias ao longo de 17 anos. Ou pagar 100.000 euros a cada trabalhador e ainda sobravam 2,5 mil milhões (5000 IAR).
Uma curiosidade: ao preço a que o Estado alemão vendeu as suas ações, o Estado português poderia ter comprado 59% da Lufthansa por 3,2 mil milhões de euros, obtendo a maioria do capital da empresa. Mudava-se o hub de Frankfurt para Lisboa e os alemães ficavam com as pernas a tremer. Como é evidente, esta ideia não teria pernas a tremer para andar. O Estado alemão e os restantes acionistas privados nunca aceitariam vender as suas participações a um dono completamente irresponsável.
- 3,3 mil milhões (6600 IAR) – Foi o montante do aumento da Dívida Pública em 2022. Sim, a dívida pública aumentou, em 2022, 3,3 mil milhões de euros. Reduziu em percentagem do PIB, beneficiando da inflação em alta e da recuperação económica pós-pandemia, mas aumentou em valor absoluto, um pouco mais que o valor que o governo injetou na TAP.
- 6,7 mil milhões (13 400 IAR) – Foi o montante que Portugal recebeu com o programa dos Vistos Gold nos primeiros 10 anos. Como é próprio de países bem capitalizados que não necessitam captar investimento estrangeiro, preparamo-nos para acabar com este programa. Não nos faz falta.
- 35 mil milhões (70 000 IAR) – Um grande salto, agora. Segundo relatórios publicados pelo Conselho das Finanças Públicas, entre 2014 e 2021, foram injetados em empresas do Setor Empresarial do Estado, através de dotações de capital e empréstimos, mais de 35 mil milhões de euros. O custo médio anual suportado pelos contribuintes com as empresas públicas neste período (4,44 mil milhões de euros por ano) permitiria reduzir o IRS a todos os portugueses em 27,5%, sem impacto nas contas públicas. (Na verdade poderia reduzir-se bem mais, uma vez que o montante adicional disponível nos bolsos dos contribuintes reverteria parcialmente para o Estado, sob a forma de IVA, impostos sobre o consumo e até IRC, com o aumento dos lucros das empresas gerado pelo incremento da atividade económica)
- 132 mil milhões (264 000 IAR) – Montante total dos Fundos Europeus recebidos por Portugal desde a adesão à União Europeia até finais de 2022. Ainda sem o PRR.
- 272 mil milhões (544 000 IAR) – Dívida Pública portuguesa em finais de 2022.
- 404 mil milhões de euros (808 000 IAR) – Se somarmos os dois valores anteriores, os fundos europeus recebidos por Portugal com a dívida pública acumulada, concluímos que o Estado português gastou 404 000 milhões de euros do dinheiro dos outros, para chegarmos ao estado em que estamos. Mas para muitos portugueses, o que é mesmo indigno é a indemnização a Alexandra Reis. Felizmente será devolvida. Era um escândalo.
Nota: Este artigo é um remake de um outro, com o mesmo título, publicado no suplemento do Público, Dia D, em Dezembro de 2006.