Diz-se que quem conta um conto acrescenta um ponto. O conto do 25 de abril não é diferente. Há inúmeras formas de contar a mesma história, e em cada versão, mudam os vilões, mudam os bons e os maus, muda o final, muda a moral. Haverá um dia em que ninguém terá vivido o 25 de abril. Eu já não o vivi, estive longe de o viver. Como serão os 100 anos do 25 de abril? As memórias já não serão as memórias dos que o viveram, mas dos que ouviram a história. Será que a história ainda será contada (da mesma forma)? O que estará escrito nos manuais de História?

A saudade é quase um símbolo universal da cultura portuguesa. Somos um povo saudosista, os que acreditam no Quinto Império, que esperam por D. Sebastião, que sonham acordados com o que já não volta, mas dormimos sobre o futuro, apagamo-lo como se apagam as noites em que não sonhamos: retidas no esquecimento.

O ano de 2024 é uma aparência, a liberdade que desce à rua é, talvez, das mais complexas de sempre. Nunca tivemos na mão tanta liberdade e tanta escolha, um privilégio inegável, sem dúvida. No entanto, parece que nunca foi tão fácil tirar a liberdade a alguém. O que dizemos e fazemos fica manchado por um lápis cuja cor ainda não conhecemos. Já não temos a PVDE, mas temos a prisão do politicamente correcto, “os polícias pela verdade”, “a cultura de cancelamento”. Mas qual verdade e que cancelamento? É evidente que não podemos comparar uma polícia do Estado, com métodos de tortura, à “polícia do politicamente correcto”. Mas que ambições são as nossas se apenas queremos impedir o regresso do impensável, mas não lutamos pelo progresso do desejável?

Quando se fala de Estado Novo fala-se de um regime autoritário, fascista, antidemocrático, entre outras coisas. Em 2024, usam-se estas palavras como quem usa peças de roupa. Não se medem as palavras, mede-se o mediatismo. Mas será que ainda se mede a roupa?

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No dia 5 de maio de 1941, o governo fez publicar pelo Ministério do Interior, o Decreto-Lei n.º 31 247, clarificando que “(…) pertence ao Estado zelar pela moralidade pública e tomar as providências no sentido de evitar a corrupção dos costumes”. Numa lei que visava tanto mulheres como homens, às mulheres era apenas permitido mostrar as costas até 10 centímetros acima da cintura. O fato de banho masculino teria de ter um comprimento de perna mínimo de 2 centímetros, e tapar a barriga; o das mulheres tinha de ter um saiote que cobrisse em pelo menos um centímetro a parte de baixo do calção justo à perna.

Quem diria que a dias do 25 de abril viria a sair uma notícia onde o Liceu Pedro Nunes pede aos seus alunos que não utilizem “calções demasiado curtos” nem “excessivo decote”. Sim, eu sei que a escola não é a praia, mas também ainda não vi alunos de biquíni na escola (e posso falar com conhecimento de causa). Não é a roupa que determina o nosso comportamento. Se os alunos se comportam como se estivessem na praia, já é outra questão. Mas se querem mudar o comportamento, mudem antes a educação, a formação, os planos curriculares, a aposta na inovação, a aposta na formação de professores, e deixem lá os centímetros dos calções e das blusas sossegados. Se eu me vestir de piloto da força área, não faz de mim capaz de pilotar um avião, ou faz? Se eu mudar a roupa de uma pessoa, não lhe mudo o pensamento nem o comportamento. E já vi pessoas com saias até ao chão, ou calças de fato, a ter comportamentos e atitudes recrimináveis, e muito pouco dignas de quem está numa escola. Toda a vida fui estudante do ensino público e já ouvi muito disto “vocês não vão a lado nenhum, são burros, vão trabalhar para caixas de supermercado”. Foi uma Professora de Francês (no ano de 2014/2015), e nunca me esqueci. Disse isto para uma turma toda de miúdos dos seus 13, 14 anos, mesmo para aqueles que sonhavam em ser jornalistas, advogados, escritores, tradutores de francês, quem sabe… Uma mulher extremamente apresentável, impecavelmente penteada, com roupas sempre a tapar os joelhos, até os tornozelos. Sempre a achei elegante e apresentável, isso não está em causa, é pena é que a roupa não lhe tenha salvado as palavras medíocres. Medir os centímetros da roupa é uma distração para resolver o que realmente interessa.

A liberdade para usar as palavras tornou-se também a liberdade para deixar de as pensar. Gritamos por liberdade às nossas crianças e aos nossos jovens, falamos do “homem mau” como se tudo fosse tão simples como a compilação de defeitos numa só pessoa. E cobrimos as campas do “homem mau” com “caixas de medicamentos antifascistas”, como fez Bordalo II. É tudo um bocadinho mais complexo do que isto. Salazar está longe de ter sido um Hitler, um Mussolini, um Estaline. Mas eles não foram “homens maus” que apareceram magicamente para tornar o mundo num lugar mau. Também foram homens apoiados pelo povo, em contextos muito particulares. Simplificamos as coisas para não termos de falar nas mais complexas. Tornamos o mundo num lugar do bem e do mal, dividido por datas, e esquecemo-nos de que o bem e o mal são um contínuo de um pêndulo eternamente a oscilar, e que nunca pára, nem parará, num ponto fixo.

A vontade de congelar a memória intacta do 25 de abril será maior do que a vontade de descongelar o que falhou? Uma Europa democrática escrava dos EUA (um Papão Democrático); da Rússia (um Lobo mascarado de Avozinha); da China (uma ditadura que ninguém desafia). Somos a sociedade do “made in China”, do come e cospe, do não é nada connosco. Somos democratas que alimentam ditaduras. Mas o que pode Portugal contra o mundo? Se calhar não pode nada, mas na descida da Avenida da Liberdade, quase que parece que podemos tudo, somos a reencarnação da mudança, do dinamismo, da luta, da revolta. Mas eis que acordamos na manhã seguinte, ainda adormecidos na calmaria que restou da festa, e tudo se reorganiza na mesma pasmaceira.

E se é fácil deixarmos de ser reféns do mundo? Não é. Mas “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança…”. Nos 500 anos de Camões, quase ignorámos as celebrações do poeta que, não por acaso, vislumbrou, com séculos de avanço, essa imagem tão portuguesa: “Oh, maldito o primeiro que, no mundo, nas ondas vela pôs em seco lenho!” O velho do Restelo que vive em cada um de nós não deixa morrer o conforto da revolução que já se fez, mas treme que nem varas de embarcar na próxima.