Quando no dia 13 de fevereiro, na Gulbenkian, se ouviram os dolorosos relatos das vítimas de abusos sexuais por padres e membros da Igreja, e se percebeu realmente a dimensão e gravidade do problema em Portugal, gerou-se uma unanimidade em torno da urgência de tratar este tema com todo o empenho e seriedade. A Comissão Independente (CI) enalteceu o silêncio quebrado por tantas vítimas e a Igreja afirmou, sem margem para dúvidas, a sua determinação em resolver o problema, afastando os abusadores e cuidando das vítimas. “Tolerância zero” foi a expressão que se ouviu e a Igreja remeteu para mais tarde a divulgação das medidas concretas a implementar.
Um mês depois, o consenso desvaneceu-se por completo e o caos parece ter-se instalado. O tema das listas com cerca de 100 nomes de padres suspeitos entregues aos bispos pela CI suscitou uma onda de indignação pública dentro e fora da Igreja, com declarações tanto de um lado como do outro, e algumas trocas de acusações. Até o Presidente da República se envolveu publicamente no assunto, criticando a posição da Igreja, o que suscitou novas reações.
Grande parte desta confusão surgiu na sequência da conferência de imprensa dos bispos portugueses, na tarde do dia 3 de março, sentida como um “balde de água fria” por muitos católicos e como um insulto pelos que estão mais distantes da Igreja. A falta de empatia demonstrada e a dificuldade em responder à pergunta: o que vão fazer com os padres suspeitos que constam da lista? – remetendo essa questão para cada diocese em particular – gerou desilusão entre os crentes e uma perplexidade generalizada, da qual a comunicação social se alimentou durante toda a semana. A resposta a conta gotas das dioceses, que foram comunicando os seus casos e a forma como estavam a lidar com os suspeitos, incendiou ainda mais esta polémica, levando à categorização dos bispos em bons e maus, consoante tivessem ou não afastado de imediato os padres que constavam da lista. Se os bispos se queixavam de ter apenas nomes e pouca ou nenhuma informação para atuar, a CI assegurava que essa informação já tinha sido facultada às dioceses sem, contudo, deixar de se contradizer a si própria ao assegurar, noutros momentos, estar disponível para enviar os dados que fossem solicitados.
Agora que quase todas as dioceses divulgaram as suas listas, o panorama começa a ficar mais claro: um número significativo de nomes corresponde a padres já falecidos (dos 104 nomes até agora reportados, 35 já morreram); em vários casos é impossível identificar os acusados; vários outros nomes são de padres que já tiveram processos civis e/ou canónicos, 5 foram afastados preventivamente e 13 continuam no ativo. Aos poucos vai emergindo a impressão de que algo não bate certo: a lista de cem padres abusadores vivos pode, afinal, ficar reduzida a menos de metade. Claro que o facto de existirem padres suspeitos a exercer o ministério é preocupante e deve suscitar medidas rápidas e vigorosas por parte da hierarquia eclesiástica, no respeito pelas leis civis e canónicas, tendo como principal preocupação o acolhimento e cuidado das vítimas. Aliás, são vários os bispos que já anunciaram medidas preventivas e vários outros mostraram-se disponíveis para o fazer quando estiverem em posse de matéria mais concreta. Não obstante, a discrepância entre os números anunciados e os números reais não deixa de causar perplexidade. Incompreensivelmente, a CI tem tido dificuldade em esclarecer a questão, o que só agrava a perceção, cada vez mais disseminada, de que houve falta de rigor na estimativa avançada.
O que poderia parecer uma boa notícia para os bispos – “afinal os senhores bispos tinham razão” – pode ter o efeito perverso de descredibilizar o importante relatório da CI, o que só contribuiria para adensar ainda mais a profunda crise em que está mergulhada a Igreja Católica Portuguesa. É importante recordar que a CI foi criada por iniciativa dos bispos portugueses, com o intuito de conhecer com rigor e profundidade o fenómeno dos abusos sexuais cometidos por membros da Igreja em Portugal. Tratou-se de uma medida corajosa, um passo decisivo para que a Igreja pudesse finalmente conhecer a dimensão real do fenómeno e dar voz às vítimas. Foram muitos, mais de quinhentos, aqueles que partilharam as suas dolorosas histórias. O silêncio foi quebrado e o nevoeiro que envolvia as vítimas começou a dissipar-se. A descredibilização do relatório, se viesse a acontecer, significaria dar um passo atrás, com efeitos devastadores para as vítimas e para a própria Igreja, que ficaria novamente mergulhada na incerteza e no terreno pantanoso da mera opinião.
Neste sentido, parece-nos urgente recentrar o debate. O número de padres abusadores no exercício ativo do ministério pode até ser menor do que o número inicialmente anunciado pela CI, mas os testemunhos das vítimas são reais. Muitos crimes podem ter prescrito. Um número significativo de padres já morreu. Outros são impossíveis de identificar. Neste sentido, será certamente impossível responsabilizar muitos dos agressores. Mas o que não pode mesmo acontecer é esquecermos as vítimas, que, na sua grande maioria, continuam a sofrer em silêncio. Claro que é absolutamente necessário ser consequente com as promessas de “tolerância zero”. As medidas preventivas previstas pelos documentos da Igreja, como o afastamento de padres credivelmente suspeitos de abuso sexual de menores, devem ser aplicadas sem hesitação. Mas as vítimas devem ser colocadas no centro das preocupações.
O relatório da CI constitui um recurso muito valioso do qual a Igreja portuguesa vai certamente tirar proveito. Neste momento não restam dúvidas de que existe, em Portugal, um número significativo de vítimas de abuso sexual por membros da Igreja Católica, muitos deles ministros ordenados. Na verdade, não há motivos sérios para questionar a credibilidade da grande maioria dos testemunhos que chegaram à CI. Estes testemunhos são de pessoas concretas, que ousaram dar voz ao seu sofrimento. É impossível ignorá-los. Não é possível voltar atrás. O que é realmente necessário é recentrar a discussão e as energias na análise do relatório e nas muitas medidas que têm sido propostas, tanto pela CI como por membros da Igreja e da sociedade civil. Como sempre acontece, a poeira vai inevitavelmente assentar. Será necessário voltar com serenidade e paciência ao relatório, para o estudar e assimilar, mas sobretudo para tomar medidas consequentes. Confiamos que os bispos vão ser consequentes com o compromisso assumido pelo Conselho Permanente da CEP: «acreditamos que estamos num ponto sem retorno e continuaremos a trabalhar, dando atenção aos muitos indicadores que estão presentes no Relatório Final».
Muito já foi feito, mas todos sabemos que é preciso fazer mais. Basta aplicar os procedimentos recomendados pela própria Igreja. É importante que a “tolerância zero” seja mais do que um slogan. Criar mecanismos eficazes e credíveis de apoio às vítimas é urgente. A Conferência Episcopal Portuguesa e as dioceses estão a dar passos nesse sentido. A questão da reparação das vítimas precisa ser cuidadosamente ponderada. A Igreja tem por diante a exigente tarefa de implementar mecanismos de prevenção e de investir seriamente na formação de todos os agentes pastorais e, na verdade, de todos os católicos. Vivemos, em Igreja, um tempo de conversão, que é também um tempo de aprendizagem e de renovação. Para quem souber e quiser ver, será possível reconhecer que há muito caminho feito. E será possível, também, discernir o longo e indispensável caminho a trilhar.