Em 1959, o cientista e novelista inglês Charles Percy  Snow, constatava e lamentava, num livro célebre, intitulado The two cultures and the scientic revolution, o fosso existente entre as artes e humanidades e as chamadas ciências exactas. A dicotomia existente entre estas duas culturas estava de tal modo enraizada na sociedade em geral e no sistema educativo e na vida intelectual em particular que, segundo o autor, seria dificilmente ultrapassável .Decorridas mais de seis décadas, essa dicotomia não só se mantém como se tem mesmo acentuado, devido à incessante criação de novos saberes disciplinares e à multiplicação do número de peritos que monopolizam e compartimentam o saber nas respectivas áreas e dificultam a comunicação e o intercâmbio entre os vários ramos do conhecimento. Nas últimas duas ou três décadas, o que surgiu, todavia, como mais relevante não foi tanto a referida separação/oposição, mas a afirmação de uma espécie de terceiro género de saber, híbrido, compósito, mesclado de economia, de finanças, de contabilidade e de fiscalidade- chamemos-lhe o economo-financês- que se tornou hegemónico ,monopolizando os debates no espaço público e a ele subordinando toda a vida económica, política, social e cultural.  Assistimos, nestes últimos anos, através dos media , em geral, e da televisão, em particular, a um debate ininterrupto, absorvente, invariavelmente centrado nos temas da dívida, do défice e das contas públicas que, ao mesmo tempo, nos confunde e nos amedronta. Nos anos mais recentes , este género não desapareceu totalmente, mas parece agora mais atenuado e mesmo suplantado por um novo tipo de discurso da bolha político-mediática: os protagonistas são os mesmos, mas o estilo mudou, piorando bastante a vertente informativa em detrimento da espectacularidade e do sensacionalismo. Na comunicação social e nas redes sociais, a bolha funciona como uma espécie de estrutura cibernética e o output que dela emana – que aspira ao título de informação rigorosa – caracteriza-se, antes, pela falta de enquadramento e de profundidade, e, também, pela pobreza em termos linguísticos. Assistimos, diariamente, ao que se assemelha à exibição de um coro, que, em uníssono, nos “brinda” com uma forma de expressão superficial, um linguarejar típico onde abundam os pleonasmos viciosos e que se apresenta como uma marca distintiva.

É no contexto deste declínio da qualidade da informação que surgiu recentemente a utilização indiscriminada do termo carismático, alusivo a personagens de diversas áreas de actividade usado, sobretudo, em relação a actores políticos. O dom do carisma é atribuído no sentido da posse de determinadas características pessoais como poder de persuasão, encanto e sedução. Trata-se, geralmente, de uma predição, de uma expectativa, ou até mesmo da manifestação de um desejo, visto que quem, supostamente, é o contemplado pela graça ainda nada fez de especial que comprove a posse de tais atributos.

O carisma foi analisado por Max Weber (1864-1920), numa perspectiva científica, rigorosa em termos conceptuais, no âmbito da Sociologia Política. Vale a pena relembrar, muito rapidamente, o que Max Weber escreveu a este propósito, nomeadamente em Economia e Sociedade. Existem três razões que justificam a dominação e legitimam a obediência, ou seja três fundamentos da legitimidade: esta pode ser quer de carácter tradicional, quer de carácter racional (ou legal), quer de carácter carismático. É possível estabelecer então uma tipologia da dominação, em termos de ideal-tipo, isto é de conceitos de análise que não se apresentam em nenhum lado, historicamente, em estado puro. Centremo-nos na dominação carismática, referindo apenas, em relação aos outros dois tipos que a dominação tradicional repousa na crença quotidiana na santidade da tradição (ex. o poder que o patriarca, ou senhor da terra exerciam outrora) e que a dominação racional repousa na crença na legalidade dos regulamentos decretados e no direito de emitir directivas que têm os que são chamados a exercer a dominação através desse meio (ex. o poder que os servidores do Estado moderno exercem ). A dominação carismática repousa na submissão extraordinária ao carácter sagrado, à heroicidade, ou ao valor exemplar  de um indivíduo, ou, ainda, às ordens emitidas por ele. É a autoridade baseada na graça pessoal e extraordinária de um indivíduo (carisma). Traduz-se pela devoção pessoal dos sujeitos à causa de um homem e pela sua confiança na pessoa enquanto ela se singulariza pelas qualidades prodigiosas, pelo heroísmo, ou por outras particularidades exemplares que fazem dele o chefe. Aí reside o poder “carismático” que o profeta exercia, ou, no domínio político, o grande demagogo, ou o chefe de um partido político.

A dominação tradicional e a dominação racional são os dois tipos “normais” e habituais, ao passo que a dominação carismática apresenta um carácter muito particular, e, no sentido próprio, excepcional. A dominação carismática é exercida por um indivíduo a quem é reconhecida uma força única que lhe permite impor-se ao arrepio de todas as tradições e de todas as leis. Neste tipo de dominação o reconhecimento é essencial, no sentido em que são os adeptos, os seguidores que fazem o chefe carismático. A dominação carismática, excepcional sob todos os pontos de vista, é especificamente revolucionária, alterando as regras e as tradições estabelecidas. Inseparável da pessoa do chefe, só é legítima na medida em que e durante o tempo que o carisma “vale”.

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A burocracia é, para Max Weber, o processo de racionalização em curso no mundo moderno. O fenómeno burocrático foi conhecido noutras sociedades , mas é nas sociedades modernas do Ocidente que a burocracia se apresenta em estado mais puro: ela constitui a forma especificamente moderna da dominação de tipo racional (legal).

O principal trunfo exibido pelo governo, ainda em funções, é a boa saúde das contas públicas, as chamada “contas certas”.  O contraponto desta vertente inegavelmente positiva é o fraco crescimento económico, a deterioração dos serviços públicos e uma sociedade fragmentada, com cada vez mais divisões no seu seio: público e privado, jovens e idosos, empregados e desempregados. Os jovens desesperam, já não acreditam no futuro e, os mais qualificados de entre eles, emigram; a classe média, cada vez mais encolhida, está praticamente dizimada; e os mais velhos, que constituíram o alvo preferencial das medidas governamentais mais injustas, no tempo da troika, vivem a vida que lhes resta ansiosos e amedrontados, numa espécie de estado de sítio permanente.

Os idosos, em geral, são, seguramente, desprovidos de carisma, quer em termos da linguagem corrente, quer numa acepção mais científica. Sobre eles paira um preconceito, um estigma, ainda larvar mas em rápida progressão, que leva a que as próprias vítimas se sintam culpabilizadas, excedentárias, e que, frequentemente , percam a auto-estima e a vontade de viver. Numa era em que se celebra o culto da juventude, em que se enaltece a esbelteza e se valoriza o corpo, a aparência o “look” cuidado, os velhos provocam, muitas vezes, incomodidade e são, no melhor dos casos, tolerados. O idadismo foi alimentado e reforçado pelas medidas governamentais adoptadas no passado ainda recente e cuja aplicação é hoje defendida , de forma explícita , por alguns “peritos”, no espaço público. A necessidade da instauração deste tipo de medidas pressupõe um conflito de interesses em termos geracionais: o dinheiro poupado com os cortes nas reformas e nas pensões seria melhor aplicado em incentivos à actividade económica, para facilitar a inserção dos jovens no mercado de trabalho e, também, para assegurar a sustentabilidade do sistema de pensões. Será mesmo inevitável, e a única solução, condenar os velhos para salvar os mais novos?  Ressurge aqui o que foi apelidado de cisma grisalho e que corresponde mais propriamente a um anátema, uma espécie de pogrom visando os velhos deste país. A violência simbólica que se utiliza leva a que eles interiorizem e aceitem a ideia de que constituem um incómodo, uma despesa inútil, um fardo muito pesado para o erário público. Será que caberemos todos no Portugal inteiro, ou no Portugal unido, com que uns e outros nos pretendem agora aliciar?

Numa sociedade em que prevalece uma ideologia produtivista, na qual se tende a medir tudo em termos de contribuição para o sistema produtivo e em que imperam relações sociais de tipo mercantil, traduzidas em valores monetários, a velhice é encarada como uma situação de perda de funcionalidade e de utilidade social. Se, porém  utilizarmos critérios não exclusivamente economicistas para medir o contributo funcional de grupos ou de categorias sociais o veredicto a que chegaremos relativamente aos velhos será , decerto, bem mais positivo. Eles têm sido o principal esteio da sociedade providência que tem contrabalançado a fraqueza do Estado social, que, em Portugal não chegou verdadeiramente a existir na sua plenitude. A terceira idade constitui o elo principal das redes de solidariedade familiar e de vizinhança que, muitas vezes, evitam o colapso total de situações sociais muito frágeis, onde podemos incluir, além do desemprego, uma vasta panóplia de casos em que se evidenciam  múltiplas carências no que diz respeito à satisfação de necessidades básicas no campo da habitação, alimentação, saúde e educação. Os idosos desempenham, além disso, um papel menos “épico”, menos visível, silencioso, mas, porventura, ainda mais importante: eles são o repositório e os principais transmissores das tradições, das memórias e dos valores; no dia a dia, eles constituem como que o epicentro da vida social e é sobretudo através deles que circulam, se distribuem e se repartem os sentimentos, as emoções, os afectos e mesmo os conflitos com que se tecem as relações sociais; eles contribuem, em suma, de forma insubstituível, para a construção social da realidade.

Os velhos deste país recusam, contudo, certamente, o desempenho de uma “missão histórica”, qual seja a de salvar o país da “bancarrota”, imolando-se, para isso, numa fogueira alimentada pelas achas das vaidades, dos dogmatismos e da insensibilidade social; não aspiram a ser vultos da História, novos heróis da modernidade, mas rejeitam, também, o papel de culpados , marcados por uma espécie de pecado original, que radica no simples facto de (ainda) existirem. O que se reivindica é tão somente o direito de ainda ser Sujeito, de ser actor, de participar na vida social, direito esse que, na situação de velhice, implica, basicamente, a ambição de viver a derradeira etapa da vida em paz, tranquilidade e, se possível, com o sentimento de missão cumprida. Viver e morrer com um mínimo de dignidade!

Voltemos agora, para terminar, ao tema do carisma, associando-o à emergência do diabo, que tem andado em bolandas, “endossado” de lado para lado pelos líderes partidários. O diabo é lesto, sabe disfarçar-se ,não se deixa facilmente aprisionar, pode escapulir-se e surgir, repentinamente, onde menos se espera. Poderá, por exemplo, transmutar-se, esconder-se, alojar-se na pele de um líder carismático, que mobiliza e galvaniza multidões e que promete a realização de obras prodigiosas. A um líder com estas características, que surge em situações excepcionais e cuja emergência gera sempre incerteza, sobressalto, agitação e ruptura com o passado, poderemos contrapor as vantagens da normalidade e da previsibilidade da liderança democrática, ancorada no Estado de direito e regida pela ética da responsabilidade.