A CPI à TAP continua a dar que falar, funcionado como manancial inesgotável de informação, que alimenta sem cessar a bolha mediática e política. Após uma fase de críticas ao relatório preliminar, entrámos agora numa sequela de comentários e de comentários aos comentários. O presidente da comissão, acompanhado de alguns deputados socialistas e de toda a oposição em uníssono, surge a enaltecer o trabalho efectuado, a defender o princípio da separação de poderes e a insurgir-se contra o Ministro da Cultura, que ousou intrometer-se no trabalho da comissão e criticar o modo como os deputados desempenharam as suas tarefas.

O ministro, pessoa inteligente e que parece não se enquadrar totalmente no perfil habitual dos políticos de carreira, tipo” jotas”, apparatchiks, formatados para obedecer cegamente às chefias e a seguir de forma acrítica a linha oficial do partido, ousou apenas dizer o óbvio, ou seja aquilo que os telespectadores neutros e descomprometidos puderam observar em várias sessões da CPI. Como já referi em artigo anterior, publicado no Observador em 23/05/2023, os deputados inquiridores ofereceram, de facto, um espectáculo telenovelístico degradante, comportando-se sem o mínimo de isenção e de objectividade e interpelando os depoentes, muitas vezes, de forma insolente e inquisitória.

As CPI fazem parte da panóplia de rituais utilizados pelos parlamentares e, salvo raras excepções, são usualmente solicitadas e impulsionadas pelos partidos da oposição, com o intuito de criticar e de causar dificuldades ao governo, que procura defender-se e minimizar os eventuais danos. Mudam os governos, mas este tipo de práticas mantém-se. Neste contexto, parece exagerado o alarido e o coro de lamentações causados pelas lacuna e pela desresponsabilização dos governantes patenteados no relatório preliminar, como se tal não fosse expectável, considerando o legado histórico herdado. Relatórios mais rigorosos e mais isentos, em que as responsabilidades sejam claramente assumidas, só serão possíveis com mudanças substanciais no recrutamento do pessoal político. Sem deputados menos servis, mais independentes e mais autónomos, só com muita ingenuidade se poderá esperar outro modelo de relatórios. Os deputados “ofendidos” reagiram como se, repentinamente, alguém lhes tivesse retirado as máscaras usadas para desempenharem os papéis que lhes estão destinados na dramaturgia parlamentar, ficando, assim, como que desnudados e desprotegidos. Noutra perspectiva, dir-se-ia que os insurgentes reagiram de forma corporativa, como se pertencessem a uma ordem profissional, defendendo à outrance o seu estatuto e o seu modus operandi. Neste caso a reacção terá sido mais veemente porque o visado pelas críticas e intimado a retratar-se deveria sujeitar-se, como membro do pessoal político e, portanto, da corporação em sentido lato, aos seus princípios e respeitar os seus rituais.

O princípio da separação de poderes, modelo teórico basilar na história do Ocidente, constitui uma componente fundacional da democracia liberal e do Estado de direito e, como tal, deve ser respeitado, sem reservas, por todos os cidadãos. O princípio visa impedir que os diversos poderes se concentrem de forma monolítica numa única autoridade, seja ela pessoa, grupo, ou órgão governativo. Para evitar que um dos poderes se sobreponha aos outros são instituídos mecanismos preventivos, nomeadamente, o chamado sistema de checks and balances. Terão as opiniões expendidas pelo ministro violado o princípio da separação de poderes? Terão elas constituído um ataque à democracia? As repostas, peremptórias, só poderão ser negativas! A não ser assim, existiria uma contradição insanável relativamente àquele princípio, por isso a censura e a punição da liberdade de expressão, de crítica e de autocrítica, contribuiriam para a concentração de poderes e consequentemente para a instauração de regimes autoritários, obrigando à confluência de várias vozes numa voz única, inquestionável, que tudo abafaria à sua volta. O que verdadeiramente é preocupante, e causa perplexidade, foi o relativo torpor que se seguiu à divulgação do telefonema do Ministro da Administração Interna à administração da RTP, a mostrar o seu desagrado pela transmissão, naquele canal, de um cartoon sobre a actuação da PSP. Os dois factos conjugados – as críticas exarcebadas às opiniões do Ministro da Cultura e a relativa “benevolência” à reacção do Ministro da Administração Interna – constituem um retrato alarmante dos tempos que correm.

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