Após a publicação do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR) vários foram os meios de comunicação social que abordaram o tema. Os noticiários destacaram que 17% dos portugueses estavam em risco de pobreza em 2022, mas, para além disto, a taxa de pobreza ou exclusão social foi de 20,1%. Ou seja, no limite, as expectativas são de que podemos vir a atingir cerca 37% da população portuguesa em zona de pobreza (Fonte INE).
Se considerássemos apenas os rendimentos do trabalho, de capital e transferências privadas, o total da população residente em Portugal em efetiva situação de pobreza seria de 41,8%, em vez dos 17% acima mencionados. Ou seja, esta diferença entre os 41,8% e os 17% reais corresponde ao esforço financeiro efetuado através das transferências sociais – pensões, subsídios de doença e incapacidade, apoio à família, desemprego e de inclusão social (Fonte INE). Isto representaria cerca de 42% da população residente em Portugal!
Vejamos agora a evolução de um outro parâmetro diferente do anterior (taxa de pobreza): indicador de desigualdade na distribuição do rendimento, isto é, o coeficiente que analisa a diferenciada distribuição de rendimentos. Exemplificando: numa região em que todas as pessoas têm o mesmo rendimento o indicador vale 0; se numa outra região uma única pessoa por absurdo concentrar todo o rendimento dessa mesma região o indicador da desigualdade vale 100.
Em 2022, a desigualdade aumentou em todas as regiões do país, com exceção do Alentejo. A área metropolitana de Lisboa foi aquela em que a desigualdade de rendimentos mais cresceu, passando de 31,4% em 2021 para 34,9% em 2022 (Fonte INE).
As cidades ganham maior expressão na vulnerabilidade dos seus habitantes, destruindo a ideia antigamente pré-concebida de que a vida em ambiente urbano correspondia à diminuição das desigualdades sociais. Para esta alteração creio que dois fatores têm tido forte impacto: 1) o aumento do preço da habitação e a escassez de oferta, em parte resultante do fraco investimento na sua construção e em particular pela escassa disponibilização de habitação pública; e 2) o crescente número de pessoas atraídas para as cidades na perspetiva de emprego, acabando por ficar a viver situações de grande vulnerabilidade cujo extremo é a situação de sem-abrigo, mesmo que empregadas. As cidades continuam a precisar de mão de obra, mas não têm a capacidade de oferta, a preços acessíveis, da correspondente habitação. Os últimos dados revelam que as pessoas em situação de sem-abrigo têm aumentado na cidade de Lisboa com um elevado número de estrangeiros desprotegidos (em parte resultado de uma política migratória que tem sido pouco acompanhada de meios efetivos para a integração de novos residentes).
Importa ainda salientar um dado relevante sobre este Inquérito: os indicadores relativos à pobreza e desigualdade económica foram construídos com base no rendimento monetário anual líquido das famílias no ano de 2021, tendo o inquérito sido realizado em 2022. Assim, o retrato ora apresentado, naturalmente, não corresponde à atual realidade da pobreza em Portugal, sendo percetível que conjuntura socioeconómica piorou.
O mesmo inquérito refere que o aumento da pobreza afetou todos os grupos etários, embora de forma mais significativa os menores de 18 anos (mais 2,2 pontos percentuais relativamente ao ano anterior). Isto significa que a pobreza infantil em Portugal agravou. Embora todos os dados nos mereçam análise e uma estratégia de intervenção, ao verificar-se que as pessoas mais afetadas por situações de pobreza são crianças esta realidade causa-nos, naturalmente, uma maior consternação e impõe o dever ético de atuação urgente. A pobreza afeta desproporcionalmente as famílias com crianças, sendo que os dados disponíveis indicam que as crianças têm duas vezes mais probabilidade de viver em extrema pobreza do que os adultos isolados. As crianças são a faixa etária com maior probabilidade de viver numa situação de pobreza em Portugal, principalmente porque as suas famílias têm escassez de recursos e vivem privadas de adequados meios de subsistência. Geralmente os progenitores destas crianças não ganham o suficiente através do emprego para sustentar uma família, isto é, para assegurar as despesas mensais; esta situação tem-se agravado fortemente em consequência do aumento do peso do custo da habitação nos seus orçamentos mensais. Os preços das casas mais do que duplicaram, desde 2010, em Portugal, devendo continuar a crescer no território português, apesar do “arrefecimento” no imobiliário europeu, cenário apresentado pela Comissão Europeia este mês de outubro.
Os portugueses veem-se hoje confrontados com a necessidade de fazer escolhas difíceis pelos baixos rendimentos que auferem, escolhas essas que recaem mensalmente sobre as necessidades mais básicas: alimentação, habitação, cuidados de saúde incluindo a aquisição de medicamentos. Ora, os dilemas mensais passam pelo que não vão conseguir assegurar. Entre os indicadores que traduzem uma situação de vulnerabilidade material e social mais elevada em 2022 destacam-se os seguintes:
- 37,2% das famílias não têm capacidade para pagar uma semana de férias, por ano fora de casa (36,6% em 2021);
- 36,3% dos indivíduos declara a impossibilidade de substituição do mobiliário usado (37,9 em 2021);
- 29,9% dizem que não têm capacidade para assegurar o pagamento imediato de uma despesa inesperada próxima do valor da linha de pobreza (31,1% em 2021);
- 17,5% declaram não terem capacidade financeira para manter a casa adequadamente aquecida (16,4% em 2021) (Dados da Fundação Francisco Manuel dos Santos).
Duplicam-se as pessoas que procuram como solução ter dois empregos para, assim, fazer face às suas obrigações mensais. No caso das famílias esta opção implica necessariamente a retirada de tempo da família, onde se inclui o tempo para as crianças. A Presidente do Banco Alimentar Contra a Fome em Portugal declarou que os pedidos de ajuda por parte das famílias não param de aumentar: 5% da população portuguesa beneficia hoje deste tipo de ajuda. Estamos a deixar as nossas famílias para trás? Que consequências tem a pobreza infantil para o futuro de um país?
Os rendimentos familiares são sempre uma perspetiva crucial sobre a forma como os padrões de vida estão a mudar, especialmente durante as crises económicas. No ano de 2022 assistiu-se ao maior choque inflacionário em quatro décadas, o que obrigou à continuação de intervenções políticas de emergência e a um rápido aperto da política monetária. Este cenário económico é indicador de que os rendimentos disponíveis das famílias no próximo ano seguirão uma tendência de redução. O Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê um crescimento da economia portuguesa de 2,3% este ano de 2023 e de 1,5% em 2024.
Os ciclos viciosos que perpetuam a pobreza e a desvantagem entre gerações têm enormes custos económicos, sociais e ambientais no presente e no futuro de um sociedade. Acabar com eles é essencial para um futuro sustentável. Acima de tudo, é necessária uma ação urgente e concertada para combater as desigualdades profundas que causam a pobreza infantil. A pobreza infantil é um fator que aumenta a probabilidade de se verificar uma perpetuação intergeracional dessa mesma pobreza, isto é, os ciclos repetem-se entre gerações. As oportunidades de vida de uma criança dependem de uma combinação complexa de rendimento familiar, igualdade de oportunidades e bom nível de inclusão social. Embora algumas crianças que crescem em famílias de baixos rendimentos consigam atingir todo o seu potencial, muitas outras não o farão. A pobreza coloca tensões na vida familiar, exclui as crianças das atividades quotidianas dos seus pares e pode levar à situação de sem-abrigo.
Recentemente foi notícia que há um aumento do número de crianças sinalizadas às CPCJ por questões associadas à pobreza dos pais, muitas em resultado de ordens de despejo.
Viver na pobreza pode ter um impacto significativo nas aspirações futuras, na saúde, no bem-estar e nas realizações de uma criança ou jovem. O contexto em que nascemos e crescemos tem forte impacto na saúde pois os determinantes sociais afetam diretamente a saúde, aumentando o risco de doença e diminuindo a esperança média de vida. Se é certo que “somos aquilo que comemos”, também “somos aquilo que sentimos” e emocionalmente a pobreza é violenta, um acontecimento traumático que aumenta o risco de doença mental.
As políticas sociais devem garantir o acesso efetivo das crianças à alimentação, à habitação, ao desporto, à cultura e às atividades de lazer, à educação, aos cuidados de saúde e a outros serviços essenciais. As políticas devem proporcionar uma economia em que os pais possam auferir de um salário que assegure o pagamento das despesas mensais. O objetivo da política e do contrato social existente é permitir que as suas populações acedam à satisfação das suas necessidades básicas, a bons serviços públicos (educação, saúde, justiça, defesa e segurança), a uma maior equidade na distribuição dos rendimentos, a um emprego devidamente remunerado, a bens a preços estáveis e a um país com crescimento económico.
O futuro social e económico de uma sociedade depende da sua capacidade de combate à pobreza infantil e à exclusão social, uma vez que estes problemas representam uma ameaça à sustentabilidade do Estado Social para as gerações futuras. No contexto da UE-28, segundo o Parlamento Europeu, as pessoas em risco de pobreza ou exclusão social com menos de 16 anos representavam, em 2022, mais de 19 995 milhões de crianças (24,7 %, ou uma em cada quatro, estavam em risco de pobreza e exclusão social na UE). Mas o que é mais preocupante é que as crianças são o grupo mais afetado pela pobreza multidimensional. O estudo dos determinantes da pobreza infantil em todos os países e com uma perspetiva temporal é por isso uma ferramenta de grande interesse para decisões políticas e para o desenho de políticas mais específicas e bem-sucedidas que vierem a ser tomadas.
Todas as crianças têm direito a usufruir do melhor nível de cuidados de saúde possível e de uma educação de qualidade, independentemente da sua origem e do local onde vivem. Contudo, as crianças em risco de pobreza e exclusão social são mais propensas a enfrentar dificuldades no acesso aos serviços essenciais. Cerca de metade das crianças cujos pais dispõem de um baixo nível de formação estavam em risco de pobreza ou exclusão social, em comparação com menos de 10 % das crianças cujos pais dispõem de um elevado nível de formação, fator que aumenta a sua possibilidade de auferir mais rendimentos (Dados Parlamento Europeu).
Ora, o desenho das políticas de combate à pobreza não pode ser apenas reduzido à transferência de investimento em gastos públicos com prestações de proteção social para a infância e famílias, porque esta estratégia não tem produzido resultados, como os números nos revelam. E não estando a contribuir para a diminuição da pobreza infantil como pode ser revertido este fenómeno?
Importa, pois, salientar que a solução da pobreza infantil não passa só pelo aumento das prestações sociais para a infância e de apoio à família, mas deve comtemplar um maior investimento e adequada gestão do Estado Social em geral, do qual se destaca a saúde, educação e habitação.
Em Portugal, assistimos nos últimos anos, a um desinvestimento no Estado Social e na economia com a degradação dos serviços públicos o que, naturalmente, tem maior impacto nas populações que vivem situações de pobreza e que por esse motivo não têm capacidade financeira para recorrer aos setor privado de prestação de serviços, como a saúde e a educação. Os números mais recentes revelam um aumento dos beneficiários de seguros de saúde privados: em 2022 existiam 3.125.181, mais 205.353 que em março de 2021. Em Portugal 418.572 alunos, de um total de 2.025.082 estão inscritos no ensino privado no ano 2022, verificando-se um aumento de mais 13.819 alunos face ao ano anterior (Dados da Pordata).
Ora, tal desinvestimento no Estado Social tem, por isso, contribuído para o aumento do risco de pobreza em Portugal, mas tem acima de tudo contribuído para o acentuar das assimetrias sociais. Reverter tais assimetrias levará muito tempo, pelo impacto que a situação de pobreza tem nos sistemas familiares e nos indivíduos: fragilizando-os, contribuindo para a perda de forças de reação, de proatividade, retirando-lhes competências.
Pelo exposto a estratégia que vier a ser tomada de combate à pobreza infantil deve ser acompanhada de programas de proteção social que se centrem preferencialmente em medidas que promovam a conciliação entre trabalho e a família, com especial atenção para as famílias monoparentais. Igualmente, devem tais programas privilegiar as pessoas com baixas ou obsoletas competências, de modo a muni-las de novas competências que promovam a sua possibilidade de empregabilidade e subsequente aumento de remuneração. A participação social pela via do trabalho, quando adequadamente remunerada, tem efeitos no bem-estar da pessoas ao promover o sentimento de pertença e apreço a uma comunidade.
Uma outra área que carece de investimento são os programas de educação e saúde, uma vez que, como bens preferenciais, eles podem contribuir para corrigir externalidades negativas e promover a igualdade de oportunidades ao longo do ciclo de vida. Os ambientes educativos desempenham um papel essencial na mitigação deste impacto e na criação de oportunidades.
O que não podemos permitir é que não se quebrem os ciclos intergeracionais das desigualdades, que as crianças não possam viver em contextos seguros, onde o sistema de ensino lhes permita melhores qualificações que as gerações anteriores. Igualmente, não devemos permitir que os jovens adultos vejam como única solução a emigração, opção em resultado da falência das políticas do Estado. Para alguns jovens a emigração é uma estratégia para quebrar ciclos de vulnerabilidade e para outros certamente é a solução para melhorar as suas perspetivas de carreira. O combate à pobreza infantil é desejável para garantir a igualdade de oportunidades entre as crianças, bem como promover a sustentabilidade do bem-estar social para as gerações futuras. Sem geração de futuro o que nos reserva o destino de Portugal?