Contextualizando, no mercado da saúde existem três agentes: o objecto de escolha (os cuidados de saúde), o agente da procura (o utente) e o agente que oferece (o profissional ou instituição de saúde). A interação complexa entre estes agentes não só é vulnerável à indução da procura, como depende da percepção subjetiva do estado de saúde de cada pessoa e do seu grau de literacia. Esclarecendo, o termo “indução à procura” pretende traduzir práticas ou ações que levam os utentes a procurar serviços de saúde, exames ou tratamentos, mas que, em alguns casos, podem não ser verdadeiramente necessários do ponto de vista clínico.
Efetivamente, a Saúde tem assistido a um crescimento galopante de inovação, pelo que à medida que nos tornamos melhores a prevenir, diagnosticar e tratar, também nos tornamos mais exigentes com a nossa saúde e com os cuidados de saúde prestados. Para além disso, não só queremos elevar o nosso bem-estar, como o queremos garantir da forma mais fácil, mais rápida e mais acessível. No entanto, se os avanços conquistados na área da Saúde e a nossa maior motivação para alcançar uma melhor qualidade de vida aumentaram a nossa exigência com os sistemas de saúde, é fundamental prevenir o consumo excessivo, errado e desnecessário dos diferentes tipos de cuidados, caso contrário poderemos estar a condicionar o acesso generalizado à assistência médica.
Quais os fatores que promovem a indução à procura?
A subjetividade da percepção de fragilidade, aliada a contextos incertos de crise sócio-económica, guerras ou pandemias, intensificam a procura por cuidados de saúde e criam uma sensação de urgência por assistência. A promoção da economia do bem-estar, um setor que extravasa o conceito tradicional da medicina e inclui a indústria do exercício físico, da nutrição, da perda de peso e dos cuidados de beleza, assim como a existência de campanhas de marketing direcionadas a produtos de saúde, alimentam igualmente o consumo de cuidados. Por outro lado, ineficiências e problemas de comunicação entre os intervenientes deste setor podem gerar dúvidas no utente e contribuir para uma duplicação de consultas, procedimentos e prescrições. Por fim, a facilidade em aceder a conteúdos não baseados em evidência e/ou não adaptados a diferentes níveis de literacia, leva a uma maior procura por cuidados de saúde sem indicação clínica e contribui para o sentimento de urgência na resolução de um problema, sem que este exija uma resolução urgente.
Quais as consequências da indução à procura e do consumo excessivo de cuidados de saúde?
Para o consumidor, a indução à procura tem como impacto direto a medicalização excessiva e a realização de exames e procedimentos desnecessários. Indirectamente e para as instituições de saúde, sejam públicas ou privadas, este consumo satura os limites dos seus recursos e caso não consigam acompanhar a procura pelos mesmos, poderá contribuir para um agravamento das dificuldades de acesso e/ou diminuição da qualidade dos cuidados prestados. Acrescento que a indução à procura e a tentativa de aumentar a oferta para colmatar esta crescente e, por vezes, desnecessária procura, pode ter um efeito deletério no acesso generalizado a cuidados de saúde. Dois dados interessantes a explorar são, por exemplo, o aumento das “falsas urgências” no SNS, que sugerem uma utilização desadequada dos cuidados de saúde ou o crescimento do número de doentes em listas de espera, apesar do número de consultas e cirurgias ter batido valores recorde.
O que podemos fazer para proteger o utente e garantir um uso adequado dos cuidados de saúde?
Se por um lado, queremos capitalizar esta motivação para alcançar uma melhor qualidade de vida e para promover estilos de vida mais saudáveis, queremos igualmente fomentar um uso adequado e letrado das ferramentas, cuidados e instituições do nosso sistema de saúde.
Os Profissionais de Saúde desempenham um papel fulcral, sendo agentes fundamentais no combate ao consumismo em saúde, à indução da procura e à exploração da falta de literacia em saúde. No entanto, é essencial reconhecer que esses profissionais não estão imunes à influência ou à exposição a conteúdos não baseados em evidência, pelo que é imperativo incluir módulos de formação curriculares na formação pré-graduada, que desenvolvam um espírito crítico científico e que promovam uma comunicação eficaz com o paciente.
A ideia de defesa do consumidor tem, igualmente, de se adaptar ao bem “saúde” e proteger o cidadão da indução da procura, da exploração da sua falta de conhecimento nesta área e das suas dúvidas. Um exemplo será a reavaliação de conteúdos publicitados nas diversas plataformas de comunicação, garantindo um marketing em saúde ético, baseado em evidência e focado no benefício máximo do cidadão.
Por fim, o investimento na literacia em saúde deverá passar não só por conteúdos baseados em evidência sobre prevenção, diagnóstico e tratamento, mas também explorar a forma como nós utilizamos os nossos recursos em saúde. Neste sentido, é fundamental que os utentes tenham acesso a informações claras e transparentes sobre como utilizar os cuidados de saúde, assim como sobre o funcionamento dos sistemas de referenciação e das escalas de triagem para combater a percepção de urgência que a indução à procura despoleta. Neste sentido, porque não começar pelos mais jovens? Lanço assim um desafio ao Ministério da Saúde, da Educação e da Educação, Ciência e Inovação: que em colaboração com Organizações não governamentais que trabalham esta área desenvolvam um currículo, desde a escolaridade básica, que forneça ferramentas que contribuam para crianças e jovens mais informados sobre os recursos em saúde e capazes de tomar decisões mais saudáveis.
O Observador associa-se ao Global ShapersLisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.