Esta é a pergunta que o Observador tem vindo a fazer diariamente, no contexto da iniciativa a que chamou “Nova Constituição”, ao mesmo tempo que lança uma de um total de cinquenta perguntas sobre a Constituição.
A primeira confusão que se gera é que, apesar da secção se designar “Nova Constituição” e de amiúde encontrarmos esta expressão (veja-se “O porquê do debate sobre uma nova Constituição”), quando acedemos efectivamente ao texto da tal “Nova Constituição”, o que aparece é afinal “Uma proposta de revisão constitucional”. Os autores da mesma já declararam, aliás, por escrito ou durante as conferências já promovidas pelo Observador, que nunca pretenderam elaborar uma “Nova Constituição”.
Para além de uma “Nova Constituição” que na verdade não é nova (talvez melhor fosse chamá-la antes “diferente”, devido às várias supressões de artigos que sofreu), o Observador, eventualmente devido a algumas críticas feitas nas redes sociais (e nos próprios comentários às perguntas) relativamente à primeira dezena de questões colocadas, passou a assinalar que a pergunta diária lançada partiria “sempre de uma perspectiva muito prática”.
Os leitores do Observador só têm a agradecer esta ressalva.
É que perguntas como “posso exigir a construção de uma pista de ski em Faro?” ou “Segundo a Constituição, pode tocar-se uma sinfonia numa auto-estrada?” são, efectivamente, perguntas de cariz muito prático e que decerto inquietaram já alguns dos leitores. Ao anunciar que o propósito é fazer uma espécie de quiz constitucional e “testar a cultura” dos leitores (se a Hasbro descobre o potencial disto, adeus Trivial Pursuit), percebe-se melhor o motivo de questões como “quantas vezes é referida a palavra latifúndio?” ou ainda “qual é o único nome próprio referido na Constituição?” (questão inaugural e que gerou debate de relevo… pena é que não tenha sido sobre a Constituição, mas sim sobre o sentido em que o termo “nome próprio” fora utilizado, já que Hondt é na verdade o apelido do senhor Victor).
Não quero ser injusta: a segunda pergunta lançada, referente à eventual obrigatoriedade de se caminhar para uma sociedade socialista, ou questões como a (não) obrigatoriedade de nomeação como Primeiro-Ministro do líder do partido mais votado nas eleições legislativas ou as condições em que o Presidente da República poderá demitir o Governo têm efectivo interesse e poderão ajudar a desfazer algumas dúvidas dos leitores.
Porém, se o objectivo é “continuar a discutir a Constituição” e “continuar a desenvolver a democracia entendida como um projeto que une as várias gerações de portugueses” – como assume o Observador – pergunto-me se, ao invés de colocar as tais 50 perguntas (sendo que por vezes nota-se alguma incongruência entre as respostas, o que é natural porque não estamos perante uma ciência exacta e quem responde não é sempre o mesmo especialista, bem como, vá, alguma falta de imaginação: um dia pergunta-se se é possível criar um partido fascista, no dia seguinte um estalinista, quando a resposta a esta última questão poderia já resultar perfeitamente da resposta à anterior e assim libertar aquele dia para uma questão nova e mais pertinente), não faria mais sentido fazer um “Explica-me” (talvez maior do que 30 segundos) sobre alguns aspectos do sistema constitucional português, à semelhança, por exemplo, do canal CrashCourse do YouTube.
Olhando agora para um aspecto em específico da “nova-constituição-que-afinal-não-é-nova-é-só-uma-proposta-de-revisão-constitucional”: o Título I da Parte IV, referente à Fiscalização da Constitucionalidade.
A proposta dá uma machadada severa na configuração actual do sistema de fiscalização da constitucionalidade, suprimindo na totalidade a fiscalização preventiva e a inconstitucionalidade por omissão e, simultaneamente, restringindo bastante a legitimidade em sede de fiscalização sucessiva abstracta.
Começando pelo novo artigo 118.º: “São inconstitucionais as normas jurídicas que violem as normas constitucionais.” Ao contrário de algumas críticas que foram já feitas, não parece que a alteração de redacção face ao actual 277.º vise eliminar a possibilidade de a inconstitucionalidade derivar da violação de princípios constitucionais. Pura e simplesmente, podendo uma norma – como é hoje consensual na doutrina jurídica – ser uma regra ou um princípio, neste novo enunciado, o conceito de “norma” é mais amplo, nele abarcando também a inconstitucionalidade por violação de uma norma-princípio.
Também a eliminação da fiscalização da inconstitucionalidade por omissão parece pacífica: apenas 8 processos deste tipo desde 1982 e um regime (no actual artigo 283.º) em que inexiste uma qualquer sanção, o que significa que a sua supressão, aqui proposta, não iria alterar grandemente aquela que é a realidade actual.
Já quanto à eliminação da fiscalização preventiva, suscitam-se mais reservas.
Consegue-se, contudo, perceber o motivo da supressão: não sendo uma inevitabilidade a sua consagração (veja-se a sua inexistência em outros ordenamentos europeus ocidentais), tem vindo a registar uma fraca expressão estatística nos últimos anos, a que acresce o forte carácter político deste processo de fiscalização. Ainda assim, a sua supressão total, para todas as categorias de actos (ao invés de, talvez, uma alteração ao regime), importa um significativo enfraquecimento dos poderes do Presidente da República, impedindo assim que este bloqueie a entrada em vigor de normas inconstitucionais – a menos que utilizando o veto político (poder que mantém nesta proposta) fundado em razões de inconstitucionalidade.
Restaria, para estes casos, a fiscalização sucessiva, é certo. Só que, face à proposta em apreço, fica o Presidente da República também impedido de a requerer, e, com ele, a maioria dos órgãos que actualmente têm legitimidade para o fazer. Aliás, nesta “nova-constituição-que-afinal-não-é-nova-é-só-uma-proposta-de-revisão-constitucional” nenhum dos órgãos de soberania tem qualquer tipo de poderes em sede de fiscalização da constitucionalidade, tudo se canalizando para o Ministério Público e para o Provedor de Justiça. Por outro lado, desaparecendo a norma do actual 282.º – relativa aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade – pergunta-se se a discussão sobre os mesmos ficará para o campo doutrinário e sujeito à discricionariedade dos juízes do Tribunal Constitucional ou se, eventualmente, a sua delineação ficaria reservada para a lei do Tribunal Constitucional – lei essa reforçada, mas, de acordo com a proposta, já não uma lei orgânica.
Resta, claro, a fiscalização concreta. Desde 1983 até 2014, de acordo com os dados disponíveis no site do Tribunal Constitucional, apenas 4% dos processos de fiscalização incidiram sobre fiscalização preventiva, sucessiva abstracta e por omissão. É portanto a fiscalização concreta que assume o protagonismo nos processos de fiscalização da constitucionalidade. Porém, sobre esta, a maioria dos problemas que se suscitam decorre não da sua configuração constitucional, mas da forma como está recortada na lei do Tribunal Constitucional. Talvez (também) por isso a proposta de revisão constitucional não lhe tenha mexido, salvo adaptação a outras alterações do resto do diploma, como o desaparecimento da fiscalização da legalidade.
A iniciativa do Observador tem um mérito inegável: pôs a discussão sobre a Constituição na ordem do dia. O problema é que, se já anteriormente grande número de pessoas achava conhecer a Constituição e chegava a invocá-la – muitas vezes erradamente – a propósito de algumas das decisões do Tribunal Constitucional, fazendo com que fosse possível encontrar um constitucionalista dentro de muitos portugueses (mesmo entre pessoas que nunca tinham chegado a ler o texto da própria Constituição), com esta iniciativa, o Observador arrisca-se a ter de brevemente lançar um novo desafio aos leitores: o questionário “Descubra o constitucionalista que há em si”.
Mariana Melo Egídio é Assistente Convidada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa