Perguntar ao Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol quais são os seus critérios para definir multas e castigos é o mesmo que perguntar a Marcelo Rebelo de Sousa sobre a sua agenda. São mistérios insondáveis, impossíveis de desvendar, que nem os próprios conseguem perceber o que os instiga a fazer o que fazem.
Esta semana, o treinador Petit foi multado com um jogo de suspensão e 1632 euros por ter dito ao árbitro Luís Godinho – atenção, perdoem-me os mais sensíveis – o seguinte: “Já não me apitavas há dois anos e continuas a mesma m*****”. Os asteriscos vão rimar com ´herda´, para o caso de não ter sido evidente o seu significado. Por razões que desconheço – talvez masoquismo ou ócio – entretive-me a ler os comentários acerca desta multa, e quase todos diziam que quem diz a verdade não merece castigo.
Com base neste preâmbulo, gostaria de dizer algumas coisas que considero relevantes:
- Em Portugal considera-se normal insultar os árbitros. E se o insulto for verdadeiro e corresponder à realidade, melhor ainda. Devemos exaltar e fazer uma estátua a quem o diz. Atrelado ao argumento da normalidade da ofensa, surge também aquele velho discurso de o futebol ser um jogo de emoções e de que os árbitros não devem poder ofender-se assim sem mais nem menos. Mas reagir com o coração nas mãos é muito diferente de insultar como fez Petit, e se o propósito é criticar o árbitro, há instâncias próprias para o fazer. Além disso, não se trata de ofender o árbitro, trata-se de não saber comportar-se num jogo de futebol e não ser capaz de suster as indignações, por mais justas que possam parecer. Imaginemos que Luís Godinho dizia o mesmo ao Petit: “Há dois anos que não apitava um jogo teu e continuas uma m****?”. Por mais verdadeiro que fosse, por mais que lhe desse a vontade, um insulto é um insulto, e não pode ser considerado uma conduta normal, muito menos meritória.
- Claro que os árbitros devem ser criticados. É por isso que, como disse, existem lugares próprios que os avaliam após cada jogo, para sabermos se sobem ou descem a sua pontuação. Neste âmbito, estou de acordo que os árbitros poderiam ter uma avaliação mais exigente e os resultados deveriam ser divulgados com maior transparência. A arbitragem portuguesa não é exemplar e uma das razões é a sua muito parca avaliação.
- Relembro que os árbitros são a autoridade maior num jogo de futebol. Por isso, quem é que os treinadores e os jogadores se julgam para estarem sempre a insultar os árbitros quando não concordam com eles? Fazem tantas vezes o que querem e nada acontece. Relembro, uma coisa é o calão, um ou outro palavrão, uma cara mais feia ou irritada por uma má decisão, outra é o permanente insulto. O jogo deve ser um lugar para o Homem aprender o que é viver com seriedade, fair-play e respeito por qualquer ser humano.
Aproveito para enumerar alguns exemplos de outras realidades com quem nós, pessoas do futebol, podemos aprender: em Inglaterra, por exemplo, um treinador não pode falar sobre um árbitro, nem antes nem depois do jogo. Se fala, é multado severamente. No rugby, apenas o capitão de equipa pode falar com o árbitro. Na NBA, gestos obscenos ou comportamentos desadequados valem milhares e milhares de dólares de multas. Claro que também há maus exemplos, mas são punidos como deve ser e, porque há condenação popular e legal, são exemplos excecionais e nada comuns.
Aqui, em Portugal, um gesto ordinário é literalmente ordinário. Petit foi multado como foi (tendo sido estranhamente castigado há uns tempos por um mês por causa uma coisa semelhante), o Sporting foi multado com quase 4 mil euros por um atraso de 6 minutos, Sérgio Conceição foi multado em 500 euros, Rochinha viu a sua falecida mãe ser insultada com palavras que valeram um castigo de 300 euros ao Boavista e cânticos racistas nem mil euros de multa valem, em muitos casos. Por que razão os castigos são tão brandos? Por que razão o mesmo comportamento vale castigos diferentes? Por que razão há tantas multas tão baixas e outras tão altas? Ninguém compreende.
São perguntas a que o Conselho de Disciplina deve responder com rigor, transparência, coerência e implacabilidade. Continuarmos livres para fazer disparates dentro e fora de campo é fundamental, mas se, à boa maneira portuguesa, continuarmos a lidar com comportamentos desastrados através de panos quentes, multas anedóticas ou medidas avulsas e inconsistentes que nada resolvem, a verdadeira reforma que o futebol clama com urgência mantém-se por fazer, encostada a um canto como um jogador não convocado. Cabe ao Conselho de Disciplina fazer aquilo que lhe compete: prevenir e, se for necessário, reagir com mão firme para que as atitudes erradas de hoje sejam uma exceção no futuro.
Não só são incompreensíveis os critérios, como algumas das mais altas instâncias do futebol continuam, direta ou indiretamente, a promover um desporto intolerante, desrespeitoso e violento, e fecham os olhos ao negar a sua principal função: ajudar a que ele se evidencie como um dos principais motores para o desenvolvimento da sociedade, como um lugar para as famílias, para aprender o valor das regras, da diferença, da liberdade, do respeito pelo outro, da superação, do empenho e para saber que na vida existem muitos campos. E neles, devemos entrar inteiros, humildes, profundamente humanos e sedentos de vitória.