Ainda na ausência dos resultados finais da eleição para a Assembleia da República, dada a falta de contabilização dos votos dos círculos da Europa e de Fora da Europa (que totalizam quatro mandatos), face à informação disponível neste momento, é possível reunir um conjunto de observações, analisando o histórico dia de ontem, na perspectiva essencialmente jurídico-constitucional.
- Por ordem de prioridades, a primeira dessas observações, face aos resultados obtidos pelo CHEGA no Alentejo (onde conseguiu mesmo conquistar um mandato no círculo que elege apenas dois Deputados), expulsando de toda essa mítica região o PCP, diz-nos que havia algo de muito errado nas opções políticas feitas no período revolucionário há meio século e transportadas à força, há 48 anos, para o interior da Constituição de 1976, como sucedeu com a Reforma Agrária – é caso para dizer que as eleições legislativas de 2024 representam nesse particular aspecto uma “segunda revisão constitucional de 1989”.
- Em segundo lugar, ao contrário do que muito se tem dito e escrito nestes dias, haver governos minoritários em Portugal foi pensado na Constituição de 1976 como a regra (e não a excepção), de que são prova, designadamente, a adopção do sistema de representação proporcional e, nele, do método de Hondt, bem como a desnecessidade de um voto de investidura do Governo (ao contrário do que sucede, por exemplo, na região autónoma da Madeira) [1], razão pela qual é absolutamente errónea a tese de que, por causa disso, o Presidente da República tem agora uma “enorme dor de cabeça” pela frente [2]. Mais: não é só em Portugal que a situação é normal, na medida em que na maior parte dos países da Europa continental, onde por regra também vigora o sistema de representação proporcional [3], o que é deveras excepcional é a existência de maiorias absolutas.
- Deixando agora de lado a Constituição, objectivamente falando, o facto político-constitucional porventura mais assinalável de todos é a mudança da configuração do sistema de partidos (a que podemos também chamar “alteração estrutural do sistema partidário”) [4], pois o partido mais votado [5] terá ficado na melhor das hipóteses a 6 pontos do limiar dos 35% requeridos para ser tido como partido “dominante” [6], razão pela qual, diferentemente do que sucedeu em 2015 (onde ocorreu apenas uma mutação funcional) [7], agora o sistema de partidos deixou de poder ser considerado um sistema multipartidário de partido dominante [8], para dever começar a ser visto como sistema multipartidário perfeito.
- Todavia – e este dado é extremamente relevante –, o PSD e o PS conseguiram alcançar o limiar dos dois terços dos Deputados em efectividade de funções, o que lhes permite ainda decidir as questões mais importantes do regime, a começar pelas de aprovação das alterações à Constituição (embora já não tenham poder para desencadear uma revisão extraordinária da Constituição) [9].
- Muito discutido tem sido também nestes tempos o mote da governabilidade. Porém, antes de fazer a observação sobre essa matéria, há uma nota prévia, absolutamente fundamental, que merece ser isolada, pelo facto de a governabilidade, enquanto realidade conceptual, dever ser entendida em pelo menos dois sentidos: o formal e o material.
- Em sentido formal (ou aritmético), a governabilidade tem a ver com o princípio maioritário, o que, num sistema de governo de base parlamentar como o nosso (ainda que com uma componente mista, dado o reforço do estatuto e poderes do Presidente da República), se exprime na existência de uma maioria de Deputados de um partido ou coligação, dotados de apoio parlamentar suficiente para viabilizar o correspondente governo;
- Em sentido material (ou real), a governabilidade tem a ver o lado positivo da ideia de constitucionalismo [10], exprimindo-se na capacidade de governo efectivo, ou seja, na capacidade de realização do bem comum, de prossecução dos fins do Estado e, não menos, na capacidade real de cumprir e atender, com racionalidade e eficiência, àquilo que foi o mandato que os governados confiaram aos governantes.
- Se os governos do PS, ao longo destes oito anos, conseguiram alcançar as condições de governabilidade formal, esses governos – especialmente o último (como até o actual líder do partido reconhece) [11], que dispôs das máximas condições de governabilidade formal (uma maioria absoluta) – foram incapazes de conseguir um módico de governabilidade em sentido material: o governo da “geringonça” reverteu medidas do anterior governo da direita (constantes das “posições conjuntas”) e tinha apenas uma única grande reforma política no horizonte (a da descentralização) – reforma que não conseguiu rematar [12]; o segundo governo é certo que teve a pandemia pela frente, mas geriu-a de forma incompetente e contrária à Constituição, como pude amiúde demonstrar [13], não tendo sido sequer capaz de aprovar uma lei sobre o assunto e deixando as regiões autónomas em roda-livre, como se fossem repúblicas soberanas; e o terceiro governo foi, nesta dimensão, o mais fraco dos três [14].
- Ora, com as eleições de ontem, embora a empresa se afigure difícil, não é de todo impossível que que estes dois sentidos de governabilidade se invertam:
- Por um lado, o PSD, dada a estreiteza da sua vantagem eleitoral tem todo o interesse em reforçar a governabilidade formal, numa parceria com a Iniciativa Liberal, partido que deliberadamente recusou integrar a coligação, por estar empenhado em mudanças reais, e não no “arrastar dos pés;
- Por outro lado, o PSD sabe – e já o explicitou nestas horas – que terá de dialogar constantemente, diálogo que envolve necessariamente dois círculos: (i) um círculo de governo (onde com a Iniciativa Liberal é possível conduzir um conjunto de reformas, ora mais viradas à esquerda, ora mais viradas ao centro ou à direita, concitando a abstenção ou, aqui e ali, o apoio de outras forças políticas); e (ii) um círculo de reformas de fundo (dentro do qual não deve excluir nenhuma força política).
- Além do referido inicialmente, o partido que (com o orçamento de campanha mais modesto) teve o resultado mais surpreendente foi o Livre. E com toda a justiça: ao manifestar – contra a histeria de certa comunicação social e de sectores radicais – disponibilidade para dialogar com a Aliança Democrática, em questões de fundo (como as da reforma da Justiça, da reforma eleitoral ou outras), o Livre assinalou o caminho por onde deve passar o percurso do círculo mais amplo do diálogo e concertação política requeridos neste novo cenário.
- Quanto ao exame das causas das demais grandes transformações registadas nas eleições de ontem, começando pelo tempo longo, a responsabilidade principal deve ser assacada aos maiores partidos do sistema: como há dias escreveu António Barreto, os partidos democráticos, caso se queixem, «queixam-se da sua própria obra» [15].
- Já quanto ao exame (de uma parte significativa) das causas próximas dos resultados de ontem, permitam-me reproduzir aqui, porque as subscrevo, as palavras de João Pereira Coutinho: «Quando o Chega triplicar os seus deputados, o dr. Ventura devia juntar os ‘activistas’ à lista de agradecimentos onde já figuram Augusto Santos Silva, o PS e a comunicação social em peso. Sem estes adubos, a colheita seria mais fraca» [16].
Lisboa, 11 de Março de 2024
[1] Como tenho defendido, o regresso (porque o Estado Novo foi a estabilidade governativa no seu esplendor) à estabilidade, deveu-se não à Constituição, mas sim à sociedade, que a impôs a partir de 1987, ano a partir do qual os Governos só caíram por culpa (política, entenda-se) ou decisão (como sucedeu com António Guterres ou António Costa) dos Primeiros-Ministros.
[2] Como defendeu o Director do jornal Público, nesta madrugada, no “Podcast Soundbite”, que pode ser ouvido aqui).
[3] Embora sem listas fechadas e bloqueadas (salvo duas excepções), como ainda sucede em Portugal (cfr. José Melo Alexandrino, A reforma inadiável do sistema eleitoral, texto inserido a 26 de Fevereiro de 2024, aqui, e também publicado no jornal Observador, em 27 de Fevereiro de 2024, disponível aqui).
[4] Neste sentido, admitindo a hipótese, veja-se Vital Moreira, em texto hoje inserido (disponível aqui).
[5] Partido esse que, em boa hora, se coligou com outras forças políticas de escassa representação, mas sem as quais a coligação que encabeçou não teria mesmo alcançado a vitória eleitoral.
[6] Como recentemente referi, até 10 de Março de 2024, em 49 anos, Portugal conseguiu manter um sistema de partidos estável, em que um dos partidos (PS ou PSD), alternando no poder, obtinha por regra esse patamar, razão pela qual (não obstante terem por vezes um número de deputados que poderia fazer crer que estivéssemos perante um sistema bipartidário), salvo até 1982 (em que era condicionado), sempre o qualificámos como sistema multipartidário de partido dominante (v. infra).
[7] José Melo Alexandrino, Lições de Direito Constitucional, vol. II, 4.ª ed., Lisboa, 2024, p. 53; Id. A reforma inadiável…, p. 5.
[8] Quanto à tipologia básica dos sistemas partidários aqui adoptada, cfr. José Melo Alexandrino/Jaime Valle, Lições de Direito Constitucional, vol. I, 4.ª ed., Lisboa, 4.ª reimp., 2023, pp.195-196.
[9] José M. Alexandrino, A reforma inadiável…, p. 5.José Melo Alexandrino, «O 10 de Março, segundo Vasco Pulido Valente», in Observador, de 7 de Março de 2024, disponível aqui.
[10] Sobre o assunto, José M. Alexandrino/Jaime Valle, Lições de Direito Constitucional, vol. I, p. 49.
[11] Como fez na declaração de derrota desta noite.
[12] Veja-se o meu livro: Uma década de reformas do poder local?, Lisboa, 2018.
[13] Por exemplo, cfr. José Melo Alexandrino, Dez apontamentos sobre o recurso à Lei de Bases da Protecção Civil, de 21 de Junho de 2021, disponível aqui.
[14] José M. Alexandrino, «O 10 de Março, segundo Vasco Pulido Valente», loc. cit.
[15] António Barreto, «Perigos, ameaças e fantasmas», in Público, de 10 de Fevereiro de 2024, p. 3 (artigo também disponível aqui); quanto à minha apreciação, José M. Alexandrino, A reforma inadiável…, pp. 1, 4-8.
[16] João Pereira Coutinho, «Lições de Agronomia», in Correio da Manhã, de 19 de Novembro de 2023 (também disponível aqui).