Soube só vagamente que, há dias, uma tenista qualquer reclamou com um árbitro qualquer durante um jogo qualquer. Na América. Dito assim, ou dito assado, o facto é tão irrelevante quanto o meu jantar de anteontem. Sucede que os tempos são propensos a pegar em irrelevâncias, agitá-las imenso e servi-las a título de “assunto”. Assunto ou, na linguagem e na acção contemporâneas, motivo de indignação. Hoje, quase tudo é pretexto para as pessoas se indignarem e exibirem o resultado na internet, um palco de furiosos que tornou anacrónicos o Speaker’s Corner no Hyde Park, a terapia do grito e os desfiles da CGTP. Porque é que um “match-point” remoto não deveria enfurecer multidões?

Primeiro, vieram os patriotas. Pelos vistos, o árbitro em questão é português e, naturalmente, “um dos melhores do mundo”. Entre parêntesis, começa a ser redundante acrescentar a expressão “melhor do mundo” à palavra “português”. Num movimento estimulado pelos comentadores da bola e pelo prof. Marcelo (outra redundância), é praticamente obrigatório notar que, dos treinadores às rolhas, dos chocos grelhados às solas de borracha, aquilo que Portugal produz constitui uma bênção para a humanidade, no fundo pasmada ante a nossa grandeza. Fora de parêntesis, no caso em questão, os patriotas nunca permitiriam que a afronta a um árbitro de que nunca ouviram falar passasse sem resposta. Milhares de “posts” no Facebook convidaram a tal tenista, e o público boçal que a aplaudiu no mau perder, a respeitar a nossa nação superior, ali representada por um senhor empoleirado.

Depois, vieram as – ou os, não quero ofender ninguém – feministas. Para estas, ou estes, as críticas posteriores à birra da tenista apenas existiram porque a tenista é mulher e, como tal, vítima de discriminação. Fui ver. A mencionada atleta, Serena Williams de seu nome e 16ª no “ranking” da modalidade, detém um pé-de-meia de meros 170 milhões de dólares, além de mansões humildes em Los Angeles e Palm Beach. A fortuna do actual primeiro classificado da tabela masculina, Rafael Nadal, anda pelos 160 milhões. Fica claro que a sra. Williams agoniza às mãos do sexismo vigente. E fica claríssimo o ócio mental de quem aproveita cada ocasião para protestar em nome dos demais sócios de uma agremiação imaginária, cuja vasta maioria não lhe encomendou o serviço. Milhares de “tweets” revoltados voltaram a demonstrar que os campeões das “identidades” carecem urgentemente de uma.

Por fim, entrou em cena a turba indistinta que, no meio de uma polémica postiça, costuma recolher as pequenas polémicas postiças que sobram. No caso, o “racismo”. É que a sra. Williams é “preta” ou, mil perdões, “afro-americana”, e isso abre a porta a toda uma série de possibilidades no sector da indignação. Pior do que a referência à “raça”, os anti-racistas abominam a indiferença à “raça”: é necessário chamar incessantemente a atenção para semelhante critério de modo a que o critério deixe de chamar incessantemente a atenção, e o universo viva em harmonia – ou em guerra racial, o que para os “anti-racistas” é ainda melhor. A concentração de melanina no corpo da sra. Williams diminui a sua sensibilidade à luz solar e aumenta a sensibilidade dos “anti-racistas” ao resto. O autor de um “cartoon” que ridicularizava a ira da sra. Williams no “court” viu-se acusado de ridicularizar a “etnia” da sra. Williams na vida. A pensar no desgraçado, milhares de publicações no Instagram (liberdade poética, ignoro o que o Instagram faz) acenderam uma fogueira “virtual”, lamentando unicamente a “virtualidade” da dita. O desgraçado esteve a um passo de perder o emprego, castigo mínimo por beliscar a susceptibilidade de estranhos.

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E eis o ponto a que chegamos no ano da graça de 2018. Nas sociedades democráticas, informadas, tecnológicas e instruídas, o cidadão médio aceita com curiosa pacatez que o Estado o roube, que os partidos o gozem, que a banca o humilhe, que o jornalismo o engane, que os sindicatos o manipulem, que o poder, em suma, o atropele com testemunhas e despreocupação. Se, porém, acontece algures uma patetice sem vestígio de influência no seu quotidiano, saiam da frente do cidadão médio, cego de raiva e inchado de moralidade, em corrida desenfreada até à “rede social” mais próxima para denunciar injustiças e promover punições. Por cá, isto consistiu no desenvolvimento talvez lógico desse ex-libris dos provérbios palermas: quem não se sente não é filho de boa gente. Descendentes de gente maravilhosa, os cidadãos decidiram sentir, sentir muito, sentir imenso, sentir sempre – desde que, vale acrescentar, o sentimento verse matérias que não lhe dizem respeito. Com eles, ou elas ou o que quiserem, ninguém brinca. Excepto os que brincam, e impunemente.

Notas de rodapé:

1. O dr. Rio, portento escolhido pela “direita” para consagrar o rumo socialista previsto na Constituição, abençoou uma tentativa do Bloco de Esquerda em taxar especialmente as “mais-valias rápidas” (?) no imobiliário, ideia tão grotesca que é espantoso o PS não lhe ter pegado. Confirma-se que Pedro Passos Coelho era o derradeiro obstáculo ao regime de partido único. Uma vasta maioria de portugueses, à sua maneira também únicos, gosta assim.

2. Grandes nomes da cultura internacional e caseira, de Brian Eno ao Padre “Na Reserva” Fanhais, de Mike Leigh a António “Hífen” Pedro Vasconcelos, de Aki Kaurismäki a José Mário “Inquietação” Branco, empenharam-se num projecto comum: impedir a realização do Festival da Eurovisão em Israel. Parece que não conseguiram, mas nem tudo está perdido. É ridículo juntar tantos talentos sem os aproveitar para outras causas humanitárias similares: a reabilitação póstuma de Adolf Eichmann, a atribuição do Nobel da Paz (ou da Literatura) ao Estado Islâmico, o boicote a Jerry Seinfeld, eu sei lá.